23/05/2008

11 | GLOCALIZAÇÃO: 'PLANETA-E-COMUNIDADE'

A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.

A idéia de glocalização, no sentido em que estamos empregando aqui o conceito, é anterior ao termo ‘glocalização’. Essa idéia-matriz começou a se formar muito antes da recente percepção da constelação de fatores que possibilitou a eclosão do fenômeno que interpretamos, quase sempre unilateralmente, como globalização.

A consciência da glocalização começa quando se pode ver o planeta como um lugar, mas só se afirma plenamente quando se pode ver um lugar como um holograma do planeta inteiro. Há, todavia, uma imagem antes da idéia.


A imagem antes da idéia

Talvez por isso a glocalização tenha começado a ser percebida e a fazer sentido para as pessoas quando se pôde, pela primeira vez, olhar a Terra do espaço, percebê-la como um corpo único. Aquela imagem (e isso já foi observado por várias pessoas) altera completamente o nosso imaginário... Como escreveu o astrônomo Fred Hoyle em 1948, “quando tivermos uma fotografia da Terra, tirada de fora da Terra... uma nova idéia mais poderosa que qualquer outra na história será desencadeada” (1).

Além da citação acima, não sei o que mais disse sobre isso Fred Hoyle. No entanto, mesmo sem conhecer o contexto da citação ou outros possíveis escritos de Hoyle sobre o tema, podemos adivinhar que idéia é essa. É a idéia da planetização, ou seja, da “Espaçonave Terra” (introduzida por Richard Buckminster Fuller em 1969) – uma espaçonave na qual somos todos tripulantes – e, também, da ecumene planetária, quer dizer, da casa da humanidade (um mesmo lugar de todos e para todos) e, ainda, para além da casa dos seres humanos, a casa de todos os seres aqui existentes em uma mesma totalidade viva – ou seja, a idéia, bem mais abrangente, de Gaia.


A hipótese Gaia

O formulador da hipótese Gaia, no início dos anos 70, foi o cientista independente inglês James Lovelock. Segundo ele, a idéia foi exposta pela primeira vez “em 1972, na forma de uma nota com o título de “Gaia vista através da atmosfera”... Depois de discussões muito demoradas e intensas, Lynn Margulis e eu fornecemos declarações mais detalhadas, embora concisas, nas revistas Tellus e Icarus. Em 1979, a Oxford University Press publicou o meu livro “Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra”, que reunia todas as nossas idéias até aquele momento. Comecei a escrever aquele livro em 1976, quando o módulo espacial Viking da NASA estava para pousar em Marte. Utilizei a presença dele ali como um explorador planetário a fim de estabelecer o cenário para a descoberta de Gaia, o maior organismo vivo do sistema solar” (2).

Em “O Planeta Simbiótico” (1998), Lynn Margulis – que deve ser considerada co-autora da hipótese Gaia – conta que “o termo Gaia foi sugerido a Lovelock pelo romancista William Golding, autor de “O senhor das moscas”. No início da década de 1970, os dois moravam em Bowerchalke, Wiltshire, na Inglaterra. Lovelock perguntou ao vizinho se seria possível substituir a longa e pesada expressão “sistema cibernético de tendência homeostática conforme detectado por anomalias químicas na atmosfera da Terra” por um termo que significasse “Terra”. “Preciso de uma boa palavra curta”, disse. Em caminhadas pelo campo na magnífica região das chapadas calcárias, no sul da Inglaterra, Golding sugeriu Gaia. Antiga palavra em grego para “Mãe Terra”... [Mas] Gaia não é um organismo... é o resultado da interligação dos 10 milhões ou mais de espécies vivas que compõem seu corpo sempre ativo... É uma propriedade emergente da interação de organismos...” (3).

A introdução do conceito (e do termo) ‘Gaia’, no âmbito da ciência, trouxe duas conseqüências complicadas. Por um lado, municiou o nascente movimento ecológico mundial com o argumento de que, degradando o meio ambiente natural, estávamos destruindo o planeta inteiro, ato que seria equivalente, do ponto de vista ético, ao assassinato de um super ser vivo e deveria, portanto, ser considerado como um super-crime. Por outro lado, mexeu profundamente com um imaginário mítico, fazendo renascer esperanças de uma volta à tradicionalidade de uma hipotética era primordial, com a conciliação final entre o ser humano e a grande deusa mãe-terra. A complicação, aqui, se refere ao fato de que ambas as interpretações são antropocêntricas; tentam humanizar a natureza e o cosmos ao invés de tentar humanizar a humanidade.

Contra as simplificações do conceito introduzidas por ambientalistas e espiritualistas, Margulis invectiva que “Gaia não significa apenas conservação da natureza ou um retorno à deusa. Gaia é a superfície regulada do planeta que está incessantemente criando novos ambientes e organismos. Mas o planeta não é humano, tampouco pertence aos seres humanos. Nenhuma cultura humana, a despeito de sua inventividade, pode acabar com a vida neste planeta, mesmo que tentasse. A Terra é mais um gigantesco conjunto de ecossistemas em interação do que um único ser vivo, e como fisiologia reguladora de Gaia ela transcende todos os organismos individuais. Os seres humanos não são o centro da vida, e nenhuma outra espécie o é. Os seres humanos não são sequer fundamentais à vida. Somos uma parte recente e em rápido desenvolvimento de uma gigantesca e antiga totalidade... Gaia é a série de ecossistemas em interação que compõem um simples e enorme ecossistema na superfície da Terra. Ponto final” (4).

Por outro lado, a hipótese de Gaia não foi bem captada pelas correntes espiritualistas, cujas visões de futuro como repetição de passado ainda estão aprisionadas em um paradigma de tradicionalidade, correntes que carregam o peso de uma tradição mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática e que imaginam que nada está acontecendo além do retorno à unidade primordial e que tudo isso já estava escrito ou já tinha sido previsto. Para essas correntes tudo está seguindo um plano, o futuro já está contido no divino software implantado na Criação (ou coisa que o valha) em todos os seres (daí porque todos os seres são, de certo modo, vivos – o que fez a hipótese Gaia cair como uma luva), a evolução não passa de um desdobramento da “centelha” inicial (é o software “rodando”), e todos os componentes do sistema estão dispostos por graus evolutivos em uma ordem sagrada (hierarquia), ou seja, estão hierarquicamente distribuídos em uma cadeia vertical que vai da pedra ao deus, passando por diversos “reinos” (e mesmo esta denominação talvez não seja por acaso): mineral, vegetal, animal, humano, angélico e divino. Ora, o modelo de Gaia como uma rede de 10 milhões de tipos diferentes de nodos, um sistema auto-organizador, que produz ordem a partir das múltiplas e imprevisíveis interações entre os seus componentes, não poderia mesmo ser bem compreendido pela mente determinista tradicional.

Não faria sentido dar seguimento a tal polêmica em um livro como este. Para os propósitos da presente investigação o importante a considerar é que – como assinalou Lovelock – “a teoria de Gaia obriga a que se tenha uma visão planetária” (5). Neste sentido, a elaboração da hipótese de Gaia faz parte desse movimento cultural emergente de planetização.

Do ponto de vista científico (ou melhor, da filosofia da ciência), podemos reprobar, como fez Margulis em relação à hipótese de Gaia, os espiritualistas e os arautos da nova era, sobretudo pelas simplificações e pelas imprecisões que introduzem quando pulam de um campo do conhecimento para outro sem fazer as necessárias transposições hermenêuticas, esquecendo-se de levar em conta as diferenças de status epistemológico dos conceitos que manejam sem muito rigor metodológico e sem muita cerimônia semântica. Por certo, eles não fazem ciência. Isso não é motivo, porém, para, simplesmente, desconhecer ou desprezar, do ponto de vista cultural, a influência de suas idéias.


Idéias não-científicas seminais

Assim, por exemplo, ainda na década de 1960, Dane Rudhyar escreveu um curioso livro chamado “A Planetarização da Consciência”, no qual antecipava o advento de uma “sociedade plenária”, um novo tipo de organização social vislumbrado por meio de um enfoque holárquico, para além do enfoque (teoricamente) democrático. Rudhyar já fazia, àquela época, uma crítica radical das democracias realmente existentes, do igualitarismo e do que ele chamou de “democracia de mercado”, que “vê o indivíduo livre como uma entidade competitiva, em verdade como um ego agressivo cujo propósito ao viver é dominar os outros (e, a miúdo, enganá-los), a fim de acumular riqueza, poder, posses” (6).

Visionário, Rudhyar assinalou que o quadro social atual “deverá parecer cruel e tragicamente nocivo ao homem do futuro, vivendo em uma sociedade plenária composta por uma imensa rede de comunas regionais, cada uma com um forte grau de independência, porém todas integradas em uma espécie de condição organísmica de totalidade operativa dentro da totalidade global da humanidade. Em certo sentido, este tipo de organização retém algumas das características da nação americana primitiva, quando era uma federação de pequenos estados” (7). Rudhiar retoma, a esse respeito, o velho sonho de Thomas Paine, de inaugurar “um novo ponto de partida para os assuntos humanos”. Mas, diferentemente de muitas correntes de pensamento sectárias e ortodoxas, ele deixa claro que “não existe uma só verdade, um só caminho para a realização de uma sociedade plenária que abarque todos os homens, todas as culturas regionais e todas as comunidades em sua diversidade de enfoques e respostas ante o novo passo evolutivo com o qual a humanidade se defronta” (8).

O mais significativo, porém, é que ele percebeu o movimento cultural em direção à planetização quando disse que “uma sociedade ou uma cultura consideradas como um campo organizado de atividade humana se acham sempre dominadas por algum símbolo especialmente poderoso e por algum ato heróico arquetípico que inspira as multidões. Hoje em dia, o símbolo do Globo está emergindo como fator dominante da civilização que se forma lentamente a partir de nossa confusa e trágica sociedade ocidental, que logrou expandir-se pela superfície da terra de modo implacável e cego; e seu símbolo gêmeo é o da geração de um fantástico calor através de um esforço organizado, no qual colaboram cientistas de todas as nações; calor que destrói, mas também calor que nos dá a possibilidade de nos aventurarmos para além da gravitação terrestre, chegando à Lua e, finalmente, também a outros planetas. Nesta aventura, que agora está fascinando a imaginação dos homens, da mesma forma que as cruzadas e as grandes viagens do início do Renascimento fascinaram a imaginação dos homens há cinco séculos, o homem se encontrará alcançando a meta paradoxal de descobrir-se como cidadão da Terra, justamente porque é capaz, agora, de libertar-se de sua atração gravitacional” (9). É bom lembrar que Rudhyar escrevia essas coisas às vésperas de o ser humano chegar à Lua e mais de dez anos antes da primeira sonda terrestre pousar em Marte.

Seria necessário fazer um inventário cronológico do surgimento de idéias como essas para perceber como foi emergindo no mundo uma visão de futuro baseada, simultaneamente, na planetarização e na comunitarização – nas correntes espiritualistas, na literatura de ficção e, inclusive, em diversas disciplinas científicas – para perceber a dimensão e o sentido desse movimento cultural. Não importa aqui se se trata ou não de um conceito científico. O futuro não é científico. E as nossas opções políticas, que o constroem, felizmente, também não o são.

Vamos ver um outro exemplo. O polêmico e controvertido Bhagwan Shree Rajneesh, que ficou mais conhecido como Osho, centrou boa parte dos seus ensinamentos na visão de uma nova humanidade como uma república de comunas. Em um discurso proferido em 1987 ele disse: “Minha visão de um novo mundo, o mundo das comunas, significa ausência de nações, ausência de grandes cidades, ausência de famílias – mas milhões de pequenas comunidades espalhadas por toda a terra, em espessas florestas, verdes e luxuriantes florestas, em montanhas, em ilhas. A menor comuna viável, a qual nós já experimentamos, pode ser de cinco mil pessoas; e a maior pode ser de cinqüenta mil – de cinco mil a cinqüenta mil. Mais do que isso se tornará inviável, e então volta a surgir a questão da lei e da ordem, da polícia e dos tribunais, e todos os velhos criminosos têm que ser trazidos de volta... Pequenas comunas – cinco mil parece ser um número perfeito... Todo mundo conhece a todo mundo... Não existe casamento, as crianças pertencem à comuna; a comuna tem hospitais, escolas, colégios – a comuna toma conta das crianças... Todas as comunas deveriam ser interdependentes... O mundo inteiro deveria ser uma só humanidade, somente dividida em pequenas comunas, em bases práticas – nenhum fanatismo, nenhum racismo, nenhum nacionalismo. Então, pela primeira vez, nós poderemos abandonar a idéia de guerras” (10).

Se formos dividir a população mundial atual nas comunas sonhadas por Osho, teríamos 1 milhão e 200 mil comunidades de 5 mil pessoas; ou, se tomarmos uma população média de 20 mil pessoas por comuna, teríamos 300 mil comunidades. Tal exercício numérico tem apenas o objetivo de mostrar que centenas de milhares de unidades sócio-territorias, ao invés das menos de algumas dezenas de nações atuais, introduz uma mudança de qualidade no sistema. É um exercício sobre a “força da dispersão”, sobre a pulverização, sobre a grande variedade e, portanto, sobre a complexidade. Uma rede de um milhão de comunidades, de um milhão de tipos de elos diferentes e interdependentes não poderia ser regulada por um padrão de ordem preexistente. Seria um sistema complexo cuja regulação se aproximaria necessariamente dos mecanismos regulatórios de Gaia.


Da Terra-Pátria à Terra-Frátria

Edgar Morin, em “Terra-Pátria”, um livro de 1993 (escrito com Anne Brigitte Kern), dedica um capítulo inteiro à emergência de uma era planetária. Para ele, “a era planetária começa com a descoberta de que a Terra não é senão um planeta e com a entrada em comunicação das diversas partes do planeta. Da conquista das Américas à revolução copernicana, um planeta surgiu e um cosmos se desfez” (11).

A globalização ocorrida na passagem do século 15 para o século 16, juntamente com as mudanças no modo-de-ver o mundo introduzidas pela nascente ciência moderna, criaram as condições para o surgimento de uma nova era, que “começa pelas primeiras interações microbianas e humanas, depois pelas trocas vegetais e animais entre Velho e Novo Mundo” (12). Na seqüência, há uma ocidentalização do mundo, que “começa tanto pela imigração de europeus nas Américas e na Austrália quanto pela implantação da civilização européia, de suas armas, de suas técnicas, de suas concepções, em todos os seus escritórios, postos avançados, zonas de penetração” (13).

No século 19, a ocidentalização do mundo já é, simultaneamente, uma globalização econômica e uma globalização das idéias. “O surto econômico, o desenvolvimento das comunicações, a inclusão dos continentes subjugados no mercado mundial determinam formidáveis movimentos de populações, que vão amplificar o crescimento demográfico generalizado (em um século, a Europa passou de 190 para 423 milhões de habitantes e o mundo de 900 milhões para 1,6 bilhão)... Entre 1863 e 1873, o comércio multinacional, cuja capital é Londres, torna-se um sistema unificado após a adoção do padrão-ouro para as moedas dos principais Estados europeus” (14).

Se recuarmos um pouco vamos ver que, já no século 18, “o humanismo das Luzes atribui a todo ser humano um espírito apto à razão e lhe confere uma igualdade de direitos. As idéias da Revolução Francesa, ao se generalizarem, internacionalizam os princípios dos direitos do homem e do direito dos povos”. Surgem então no século 19 as teorias evolucionistas e a biologia, que, de algum modo, “vão reconhecer a unidade da espécie humana” (15).

Mas é somente em meados do século 19 que surge “plenamente a idéia de humanidade, como uma espécie de ser coletivo que aspira a se realizar reunindo seus fragmentos separados” (16). Sob o influxo de tal idéia, “a era planetária é também a aspiração, no início do século 20, à unidade pacífica e fraterna da humanidade” (17).

No século 20, há a globalização pela guerra. “A guerra tornou-se total, mobilizando militarmente, economicamente e psicologicamente as populações, devastando os campos, destruindo as cidades, bombardeando as populações civis” (18). A bomba em Hiroshima, em agosto de 1945, sinaliza a passagem para uma nova etapa na consciência planetária. Os seres humanos tomam consciência de que a humanidade pode ser destruída. A constituição da ONU, com todas as suas deficiências e insuficiências, marca o início do processo de tomada de consciência da planetarização (ou de planetarização da consciência).

Com efeito, Morin assinala que, “a despeito de todas as regressões e inconsciências, há um esboço de consciência planetária, na segunda metade do século 20” (19). Ele aponta oito fatores como componentes desse fenômeno de formação de uma consciência planetária:
a) a persistência de uma ameaça nuclear global;
b) a formação de uma consciência ecológica planetária;
c) a entrada, no mundo, do terceiro mundo;
d) o desenvolvimento da globalização civilizacional;
e) o desenvolvimento de uma globalização cultural;
f) a formação de um folclore planetário;
g) a teleparticipação planetária; e
h) a Terra vista da Terra.

Morin conclui seu diagnóstico afirmando que, em virtude da interação desses fatores, “concretiza-se o sentimento de que há uma entidade planetária à qual pertencemos, de que há problemas propriamente mundiais, trazendo nele [nesse sentimento] uma evolução para a consciência planetária. Assim, de forma ainda intermitente mas múltipla, a “global mind” se desenvolve” (20).

Embora o livro de Morin tenha sido publicado em 1993, seu diagnóstico é anterior aos anos 90. Àquela altura, era natural que tal diagnóstico, por um lado, não enfatizasse suficientemente as mudanças políticas decorrentes da queda do Muro de Berlim e, por outro, não pudesse perceber o impacto (e a amplitude e a profundidade) das inovações tecnológicas, introduzidas, em meados da década de 1990, sobretudo com a Internet. A teleparticipação planetária de que fala Morin era ainda, para usar uma expressão de Pierre Levy, mais “molar” (via TV e outras mídias não-interativas) do que “molecular” (via redes telemáticas, funcionando em tempo real) (21).

Mas o fundamental aqui é que Morin percebeu que a chamada globalização (atual) faz parte de um grande movimento em direção à planetarização, que começou a se expressar como um “sentimento de pertença a uma mesma comunidade de destino, doravante a do planeta Terra” (22). Quem tiver qualquer dúvida sobre o andamento de tal processo, previsto por Morin, pode ler, por exemplo, “A Carta da Terra” – talvez o documento mais importante da glocalização.

Morin também percebeu as características holográficas desse processo: “Não apenas cada parte do mundo faz cada vez mais parte do mundo, mas o mundo enquanto todo está cada vez mais presente em cada uma de suas partes... A globalização é... onipresente” (23).

A idéia de que a partir de um certo momento do final do século 20, cada parte do mundo “traz em si, [ainda] sem saber, o planeta inteiro” é a idéia-chave para entender a glocalização no sentido que atribuímos aqui a esse termo.

Dando seguimento a essa linha de raciocínio é possível afirmar (mas ele, ao que eu saiba, não chegou a dizer isso) que a ‘revolução planetária’ de Morin e a revolução comunitária – que chamamos aqui de ‘revolução do local’ – não são apenas realidades coevas, movimentos simultâneos, senão que constituem o mesmo fenômeno.

Planeta-e-comunidade é a realidade glocal. Esta nova realidade poderá se afirmar no mundo inteiro, quer dizer, há uma visível macrotendência que aponta nessa direção, mas não é certo que ela consiga substituir a antiga ordem mundial ainda prevalecente. O destino configurado por um mundo holográfico de miríades de comunidades sócio-territoriais e virtuais articuladas em rede planetária não está garantido. Serão os movimentos sociais e as opções políticas que nos levarão para esse ou para outro cenário.

Não os movimentos corporativos, reivindicatórios, setoriais, particularistas, reativos e reacionários e sim os movimentos que propõem alternativas de vida e convivência social aos padrões da sociedade patriarcal, autocrática e guerreira, que vigem há milênios. Não os movimentos embebidos por visões estatistas, regressivas e contra-liberais (baseadas na ideologia do realismo político, segundo a qual o mundo esteve, está e estará, sempre, inevitavelmente vincado pela divisão amigo x inimigo) ou por visões neoliberais (baseadas na ideologia econômica ortodoxa, segundo a qual o comportamento das sociedades é uma decorrência do comportamento egotista dos indivíduos, que os impele inexoravelmente à competição entre si). E sim movimentos humanizantes, que constituem humanidade porque animados – parafraseando o que disse Morin – pelo sentimento de pertença à mesma entidade planetária-comunitária de destino. Esses novos movimentos sociais não se caracterizam, predominantemente, pela vontade de poder (no sentido de serem desenhados para viabilizar a tomada e a retenção do poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade), pela motivação de derrotar um concorrente ou destruir um inimigo. Não são baseados em jogos do tipo ‘ganha-perde’ ou do tipo ‘o vencedor leva tudo’ e sim em jogos ‘ganha-ganha’. São, todos eles, movimentos de ethos predominantemente cooperativo (24).

Ora, que movimentos são esses? São movimentos:
i) pelos direitos humanos e
ii) pela universalização da cidadania (pela inclusão e pela igualdade ou não-discriminação em virtude de diferenças de renda e riqueza, de gênero, de raça e etnia, de origem ou situação social ou territorial, de condição física e psíquica – como, por exemplo, os que defendem direitos dos portadores de diferenças, ainda julgadas como deficiências à luz de uma visão de saúde como oposto de doença ou de sanidade como adequação à normalidade);
iii) pela radicalização da democracia, abarcando todo o experimentalismo inovador que se desenvolve em torno dos processos participativos ensaiados em escala local e de democracia em tempo real ou cyberdemocracy (envolvendo social networks e civic networks);
iv) pela conquista da sustentabilidade, como os movimentos ecológicos, ambientalistas e em prol do desenvolvimento sustentável;
v) pelo ecumenismo em sentido amplo e pela tolerância com as diferenças de pensamento, de credos ou visões e práticas devocionais ou confessionais;
vi) pela paz mundial;
vii) pelo fortalecimento da sociedade civil, pela promoção do voluntariado, pela responsabilidade social (individual, comunitária e institucional – visando ao engajamento de empresas, governos e organizações do terceiro setor em ações sociais) e pelas parcerias interinstitucionais que esboçam um novo padrão de relação entre Estado e sociedade no combate à pobreza e à exclusão social e na promoção do desenvolvimento humano e social sustentável; e
viii) pela glocalização (compreendendo os diversos movimentos de ‘volta ao local’ ou comunitários no contexto de uma globalização que se quer includente, como os movimentos de desenvolvimento integrado e sustentável e de sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local).

O sentido desses movimentos prefigura uma nova utopia. Ao invés da Terra-Pátria ou da Terra-Mátria (a “Mãe-Terra” de uma parte dos intérpretes espiritualistas de Gaia), essa nova utopia é a da Terra-Frátria. Como canta Caetano Veloso (em “Língua”, 1984), “e eu não tenho pátria: tenho mátria e quero frátria”.

Resta ver quais são as escolhas políticas capazes de nos conduzir na direção da Terra-Frátria.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Cit. por Russell, Peter (1983). O Despertar da Terra: o Cérebro Global. São Paulo: Cultrix, 1991.
(2) Lovelock, James (1988). As eras de Gaia. Rio de Janeiro: Campus, 1991. Lovelock reconhece, todavia, que quando formulou a teoria de Gaia pela primeira vez ignorava inteiramente idéias desenvolvidas por cientistas anteriores, especialmente Hutton, Korolenko e Vernadsky... A idéia de que a Terra está viva provavelmente é tão velha quanto a humanidade. A primeira expressão pública desta idéia como fato científico é a de um cientista escocês, James Hutton. Em 1785, em uma reunião da Royal Society de Edimburgo, Hutton afirmou que a Terra era um superorganismo e que o estudo mais adequado para ela seria a fisiologia... Ievgraf Maximovitch Korolenko [que] viveu há mais de cem anos em Cracóvia, na Ucrânia... afirmava que “a Terra é um organismo”... Hoje todos nós usamos a palavra “biosfera”, reconhecendo raramente que foi Eduard Suess quem primeiro a utilizou, em 1875, de passagem, ao descrever o seu trabalho sobre a estrutura geológica dos Alpes. Vernadsky desenvolveu o conceito e a partir de 1911 usou o seu significado moderno. Vernadsky disse: “A biosfera é o envoltório da vida, ou seja, a área da matéria viva... a biosfera pode ser vista como a área da crosta da Terra ocupada por transformadores que convertem as radiações cósmicas em energia terrestre eficaz: elétrica, química, mecânica, térmica etc.”
(3) Margulis, Lynn (1998). O planeta simbiótico. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
(4) Idem.
(5) Lovelock: op. cit.
(6)-(9) Rudhyar, Dane (1969). Planetarización de la Conciencia. Málaga: Sírio, s. d.
(10) Discurso proferido no Uruguai: 26 de maio de 1987.
(11) Morin, Edgar & Kern, Anne-Brigitte (1993). Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.
(12)-(20) Idem.
(21) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.
(22)-(23) Morin: op. cit.
(24) Em meados de 1994, tentei coligir uma lista que expressasse a temática desses novos tipos de movimento. Essa lista acabou sendo publicada, dois anos depois, no folheto “A transição para um novo padrão civilizatório” (Brasília: Instituto de Política, 1996). Naquela época escrevi que “observando iniciativas inovadoras que vêm ocorrendo a partir dos anos 70, veremos que delas não escapam alguns temas centrais: a ética (sobretudo na política); a (universalização da) cidadania; a (radicalização da) democracia; a ecologia (e o desenvolvimento sustentável); o (macro) ecumenismo (entre as religiões, tradições espirituais e culturas do planeta); a paz (mundial) e a constituição de uma humanidade global (em termos políticos, geográficos, jurídicos e sociais e não apenas como reflexo da globalização da economia). Tanto é assim que dificilmente se encontrará uma experiência social realmente nova e expressiva, seja laica ou religiosa, que não tenha, entre seus anunciados fins, um ou vários desses sete temas. Por tal motivo podemos considerá-los como temas centrais da transição (não sendo totalmente impossível aduzir outros tópicos a esse elenco)”. Com efeito, hoje, quase uma década depois, eu retiraria da lista acima o tema da ética (por ser transversal a todos os demais) e acrescentaria o tema dos direitos humanos, explicitando os movimentos pela igualdade de gênero e o tema do fortalecimento da sociedade civil e traduzindo o último tema como glocalização (entendido como comunitarismo não-conservador e de índole tolerante, no contexto de uma globalização includente).

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