23/05/2008

18 | LOCALIZAÇÃO, UTOPIA E TOPIA

Localizar não é encontrar um local, é criar um local.

Comentando o processo de localização afirmei, na seção anterior, que quem localiza é quem assume uma parte do território como se estivesse construindo um mundo para si. Mas só o faz enquanto inserido de uma maneira particular em um coletivo, não enquanto elemento individual. O local é, assim, criado pelo desejo coletivo. Por causa disso, o local tem “cara”, tem “gosto”, tem “cheiro” e tem um conjunto de outras características que lhe são atribuídas pelos que nele (com)vivem. São as relações intersubjetivas e comunicacionais que o constituem e não uma simples coleção de indivíduos lançados sobre uma mesma porção do planeta. O local se (com)forma, não se detecta como quem localiza um acidente geográfico a partir, por exemplo, de uma foto de satélite.

Dando continuidade a essa reflexão vamos comentar agora mais uma hipótese (do elenco original de proposições sobre a localização em seu sentido “forte”) segundo a qual ‘localizar não é encontrar um local, é criar um local’.

Com efeito, quando localizamos uma cidade em um mapa estamos fazendo o quê? Na verdade estamos apenas fornecendo referências geográficas que pouco ou nada informam sobre as características distintivas daquela localidade. Este tipo de “localização” nada nos diz sobre como são as pessoas que vivem ali, o que elas gostam de fazer, quais são suas necessidades e suas potencialidades, que vocação escolheram, que caminhos tomaram – caminhos que só elas mesmas poderiam abrir, da sua maneira – para afirmar no mundo uma identidade própria.

Evidentemente o olhar que revela essas coisas é lançado de um certo ponto de vista – o ponto de vista do desenvolvimento humano e social sustentável, que adotamos aqui.

Desse ponto de vista, pode-se afirmar que só existe localização se existir perspectiva de futuro para uma (e compartilhada por uma) coletividade. E se, além disso, essa perspectiva puder ser antecipada no presente. O que chamamos de desenvolvimento é o caminho em direção ao futuro desejado; ou melhor, é a caminhada coletiva a partir do presente que vai construindo tal caminho.

Assim como profetizar (para os hebreus do Norte da Palestina por volta do setecentos a. C.) não era adivinhar o futuro, mas inventá-lo, localizar não é encontrar um local, é criar um local. A comparação com a profecia – quer dizer, com a utopia – não é fortuita. Localizar é transformar uma utopia (u-topos = não-lugar, uma realidade almejada, projetada no futuro) em uma topia (um lugar concreto, uma realidade localizada e presentificada, aqui-e-agora).

Isso significa que o local não é um dado, é uma construção. Não é um ponto de partida e sim um “ponto de chegada”. Em outras palavras, o local é definido no final. Só no final ele se desenha e se recorta... e mesmo assim nunca completamente.

O início da localização é sempre um coletivo humano estável. Mas o “ponto de chegada” depende do que esse coletivo humano estável for capaz de gerar.

Pois bem. Vimos nas seções anteriores que a localização é um processo. E que uma vez desencadeado o processo, é necessário não propriamente isolamento, mas conservação e reprodução de uma mesma dinâmica endógena para que as inovações que chamamos de desenvolvimento possam aparecer. Coevoluindo por adaptação, por congruências dinâmicas, feitas e refeitas continuamente com o meio, quer dizer, por conservação da adaptação: isso é, aliás, o que chamamos de desenvolvimento sustentável. Nada mais.

Soa estranho aplicar um conceito biológico (ou melhor, surgido a partir do estudo das espécies vivas), como o de evolução (e o de coevolução), a sociedades humanas. Mas Robert Wright (2000), em “Não Zero”, nos lembra que “o significado original da palavra “evolução” era “desenvolvimento” ou “desenrolar” – como no desenrolar de um rolo antigo para ver o fim da história. Há algo a ser dito por esse sentido, há muito perdido, da palavra. Muito embora nem a evolução biológica, nem a cultural, tenham um roteiro nem sejam inexoráveis assim como uma narrativa escrita é inexorável, ambas têm uma direção – e até, defendi, uma direção que sugere uma finalidade, um telos. O desenvolvimento da vida neste planeta pode ser uma história com uma razão de ser” (1). Para Wright, é a “sinergia potencial” (ou o “non-zero-sumness”) que dá sentido ao desdobramento evolutivo. Ele está falando de cooperação, ou melhor, de um tipo “de relacionamento em que, caso houvesse cooperação, esta beneficiaria ambas as partes” (2).

A questão das relações entre localização e desenvolvimento será abordada no epílogo deste livro. Por enquanto, já se deve adiantar que qualquer coletivo humano estável, para subsistir, requer cooperação. Uma sociedade com grau zero de cooperação não seria estável e, portanto, não seria uma sociedade.

Mas se estabilidade (aplicado o conceito a coletivos humanos, i.e., a sistemas sociais) requer cooperação; cooperação, por sua vez, leva à comunidade, ou seja, a sociedades de parceria, ou, ainda, a coletividades regidas por interdependência (3).

Nesse sentido, local é sempre comunidade porquanto localização tende a criar comunidade. No centro de tudo está o que chamamos de cooperação (e o conceito de capital social), como veremos mais adiante.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Wright, Robert (2000). Não Zero. Rio de Janeiro: Campus, 2001.
(2) Idem.
(3) Bill Mollison e Reny Mia Slay, no livro “Introdução à Permacultura” (Brasília: Ministério da Agricultura e do Abastecimento / Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável, 1998) incluem, dentre as características da Permacultura ou “(agri)cultura permanente” – um sistema de design voltado para a criação de ambientes humanos sustentáveis – as relações entre diversidade, estabilidade e cooperação de um ponto de vista sistêmico. Um dos princípios do planejamento permacultural é a policultura e diversidade de espécies benéficas que tem como objetivo a conformação de um sistema produtivo interativo. Nessa agricultura eco-sistêmica, o papel da diversidade nas suas relações com a estabilidade e com a cooperação (ou sinergia) evoca um paralelo com o processo de localização. Comentando o livro de Edgar Andersen, Plants, man and life (Berkeley: University of California Press, 1952), “que descreve os plantios de jardins/pomares agrupados em volta das casas na América Central”, Mollison e Slay observam que ele “contrasta o pensamento linear, ordenado, restrito e segmentado dos europeus com a policultura produtiva, mais natural, dos trópicos secos. A ordem que ele descreve é uma ordem seminatural de plantas em seu relacionamento correto umas com as outras (consórcios), mas não separadas em vários agrupamentos artificiais. Não está claro onde ficam os limites entre pomar, casa, campo e jardim, onde existem [espécies] anuais ou perenes, ou, na verdade, onde o cultivo dá espaço para sistemas evoluídos naturalmente”. “Para o observador – explicam Mollison e Slay – isso pode parecer um sistema desordenado e desarrumado; no entanto, nós não deveríamos confundir ordem com arrumação. Arrumação separa espécies, cria trabalho e pode, também, convidar pragas, enquanto que a ordem integra, reduz trabalho e dissuade o ataque de insetos. Jardins europeus, freqüentemente arrumados de forma extraordinária, resultam em desordem funcional e baixa produção. Criatividade raramente é arrumada. Poderíamos dizer, provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade compulsiva substitui a criatividade imaginativa... A diversidade é freqüentemente relacionada à estabilidade na Permacultura. No entanto, estabilidade só ocorre entre espécies cooperativas, ou espécies que não causem prejuízo umas às outras. Não é o bastante, simplesmente, incluir o maior número possível de plantas e animais em um sistema, pois poderão competir pela luz, nutriente e água. Algumas plantas, como nozes e eucaliptos, inibem o crescimento de outras excretando hormônios de suas raízes no solo (alelopatia). Outras plantas oferecem habitat de inverno para pragas e doenças danosas a espécies próximas. Gado e cavalos, deixados no mesmo pasto, eventualmente causarão degradação. Árvores grandes competem pela luz com cereais. Caprinos no pomar ou no arvoredo irão comer a casca das árvores. Assim, se vamos utilizar todos esses elementos em um só sistema, devemos ser cuidadosos na colocação de estruturas ou plantas que intervenham entre elementos potencialmente prejudiciais... Se tivermos um sistema com uma diversidade de plantas, animais, habitats e microclimas, a possibilidade de uma infestação de pragas é reduzida. Plantas espalhadas umas com as outras dificultam a movimentação de pragas de uma planta para a outra. Todavia, uma vez que a praga se reproduza em qualquer planta, insetos e predadores irão perceber isso como uma fonte concentrada de alimentos, e também se concentrarão para aproveitar-se. Na situação monocultural, a alimentação para as pragas é concentrada; em uma policultura, a própria praga é uma concentração de alimento para os predadores... Então, a importância da diversidade não está muito no número de elementos de um sistema, mas no número de conexões funcionais entre esses elementos. Não é o número de coisas, mas o número de formas nas quais as coisas trabalham. O que procuramos é um consórcio de elementos (plantas, animais e estruturas) que trabalhem harmoniosamente juntos”.

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