23/05/2008

22 | LOCALIZAÇÃO E REVOLUÇÃO DO LOCAL

A localização é o aspecto objetivo da revolução do local, enquanto que seu aspecto subjetivo é a existência de uma crescente variedade de agentes, conectados em rede e dedicados a promover movimentos de resistência e de geração de identidade – que dão origem a comunidades de projeto – a partir das novas temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local.

Em geral usamos, como equivalentes, as expressões ‘transformação social’, ‘mudança social’ ou ‘revolução social’ para designar, pelo menos, duas coisas diferentes: i) o “conjunto de forças cegas e impessoais, tendências estruturais e contradições às quais os agentes humanos estão expostos como objetos, ou como vítimas passivas a quem a mudança “acontece”; e ii) o “resultado de esforços deliberados e intencionais de agentes humanos racionais para dar conta, individual ou coletivamente, de necessidades e problemas que eles encontram na sua vida social, econômica e política”.


A velha idéia de revolução estatal-nacional

A solução para tal ambigüidade do conceito de ‘revolução’, encontrada pelos movimentos políticos revolucionários, de inspiração marxista, do último século, foi a de tentar fundir esses dois grandes sentidos, estabelecendo que as revoluções são feitas, sim, por agentes humanos, sujeitos intencionados que, em virtude do seu trabalho militante de organização e ação políticas reuniriam, portanto, as condições subjetivas necessárias para fazer eclodir ou desencadear o processo revolucionário a partir da fixação de objetivos, da elaboração e aplicação da estratégia (ou seja, do planejamento dos passos do caminho para atingir tais objetivos), da formulação da tática (ou dos modos de atuação capazes de materializar a estratégia em circunstâncias diversas) e, enfim, de uma forma organizativa fulcral portadora de um programa (isto é, de um conjunto de medidas que, ao serem tomadas, dão desdobramento ao projeto estratégico). No entanto, tais agentes só poderiam lograr seu intento caso estivessem consteladas as condições favoráveis ao desenvolvimento do processo revolucionário (e essas condições seriam objetivas, ou seja, independentes da intenção e da posição dos sujeitos).

É óbvio que esse sentido prático ou pragmático de revolução manejado pelos movimentos revolucionários, em geral identificados com o marxismo-leninismo ou herdeiros não-renunciantes dessa tradição, é orientado por razões políticas. As condições para realizar o projeto exigem um poder suficiente para implementar o programa, o que requer, por sua vez, a posse dos instrumentos capazes de viabilizar a sua execução. Esse poder foi encarado como o poder político decorrente da conquista do Estado por parte dos movimentos revolucionários. Portanto, o primeiro objetivo seria empalmar o poder de Estado, apossar-se dos seus instrumentos ou aparelhos (os meios de coerção e dissuasão, administração, controle e regulamentação ou normatização, cooptação ou sedução). Ora, isso implica uma luta para desalojar os velhos ocupantes desses aparelhos. Essa luta é a revolução política – passo necessário para desencadear a revolução social propriamente dita.

A estratégia passa, assim, a ser compreendida como uma urdidura, um plano para “dar o bote” invertendo a correlação de forças, seja por meio da violência, seja por meios pacíficos, em geral pela via eleitoral nas democracias. Mas em qualquer caso o modelo político de atuação é fornecido por essa espécie de “teoria do bote”. A conquista do aparelho de Estado reflete uma mudança na correlação de forças existente na sociedade – de vez que exige uma certa “acumulação”, que desequilibre a balança do poder a seu favor, por parte do contingente revolucionário (em geral organizado em um partido ou em uma frente de partidos e outras organizações), sem o que não é possível adquirir o comando dos centros decisórios (em geral as estruturas do governo central), tomando-os pela emprego da violência ou ganhando uma eleição decisiva. Para tanto, é necessário “acumular forças” para “dar o bote” na hora certa.

Evidentemente tudo isso se baseia em uma certa visão adversarial da política (vista como um campo de relações amigos x inimigos), segundo a qual a sociedade se divide em grupos com interesses e opiniões contraditórios os quais, em algum momento próximo a um desfecho final, se agruparão sempre em grandes campos em confronto. A revolução política é, então, sempre uma luta, uma sucessão de combates, uma guerra (com ou sem “derramamento de sangue” – termos, aliás, com o quais Mao definia a própria política) (1). Há, sempre, um momento decisivo, aquele que define qual grupo vai empalmar o poder de Estado (daí a “teoria do bote”).

Depois, é claro, restam por fazer todas as tarefas substantivas. O poder de Estado é o meio, o instrumento fundamental para realizar tais tarefas (consubstanciadas no programa revolucionário). Mas depois é depois. O instrumento fundamental a ser conquistado para que se possa realizar as medidas é tão importante (e coloniza de tal maneira a consciência dos agentes) que o objetivo intermediário da sua conquista embaça a visão do objetivo final (a implantação do projeto revolucionário de transformação da sociedade).

Assim, a conquista e a retenção pelo maior tempo possível do poder conquistado não raro se constitui, na prática, como o objetivo final do projeto revolucionário. Por quê? Porque mesmo tendo ocupado os aparelhos do Estado é necessário mantê-los nas mãos até que se possam consumar as medidas do programa. Como, em geral, a posse desses aparelhos e a hegemonia política estabelecida dentro das instituições governamentais não são suficientes para assegurar a realização dessas medidas, torna-se necessário, sempre, conquistar ainda mais poder para garantir a sua consecução. Então se, por exemplo, um partido conquistou o executivo central de uma república, cabe conquistar também o legislativo e controlar (ou pelo menos estabelecer um relacionamento que subordine) o judiciário e o ministério público, tanto em âmbito nacional quanto em todas as demais esferas onde tais poderes republicanos constitucionalmente se estabelecem. E se isso não basta, cabe controlar (ou, pelo menos, pressionar para “domesticar”) os meios de comunicação. E finalmente, cabe exercer um controle sobre a (ou reduzir os graus de liberdade da) sociedade – o mercado e a própria sociedade civil –, sobre os (ou dos) seus entes e processos, em todas as esferas.

É óbvio que essa idéia de revolução – esboçada aqui com tal ênfase em certos aspectos que a tornam até um pouco caricatural – leva à autocracia. E é óbvio que ela tem poucas chances de se realizar em uma sociedade-rede nas democracias modernas na medida em que a posse de aparelhos estatais (e mesmo o controle sobre os aparatos oficiais de propaganda e sobre os recursos orçamentários a eles destinados e a capacidade de pressionar e subordinar os complexos privados de comunicação) não pode garantir o controle sobre as redes sociais e as novas formas de agenciamento que elas ensejam e dinamizam.

Podemos, entretanto, fazer um exercício de exposição, tomando inclusive as mesmas categorias tradicionais utilizadas pelos movimentos revolucionários de inspiração marxista, para evidenciar os aspectos que distinguem essa velha idéia de revolução estatal-nacional (como revolução política), vamos dizer assim, de uma nova idéia de revolução do local (como revolução social).

A velha idéia de revolução era uma idéia de transformação no âmbito do Estado-nação e referenciada, portanto, nessa forma de Estado, tendo, na prática, o efeito de fortalecê-la e não questioná-la, mesmo quando incluía a pregação por uma revolução mundial (que aboliria, em algum lugar do futuro, todas as fronteiras et coetera).

Como já haviam percebido os anarquistas, a velha idéia de revolução do marxismo-leninismo (e, mesmo, das variantes social-democratas mais pacíficas posteriores) não era uma luta para desconstruir a forma (piramidal) do poder (estatal). Era uma disputa pelo (por esse tipo de) poder e não contra o (ou contra tal estrutura de) poder.

O poder (estatal) capaz de ser usado como instrumento fundamental das mudanças na sociedade era o poder hierárquico mesmo. Aliás, quanto mais verticalizado e centralizado ele fosse, melhor. Porquanto mais capacidade conferiria aos seus detentores de impor superávits de ordem à sociedade, requisito considerado absolutamente necessário para espancar, na raiz, os interesses dos grupos sociais em contradição com os objetivos, as medidas e os procedimentos revolucionários.

A chamada revolução do local como uma revolução social é algo muito diferente disso, como veremos a seguir.


A nova idéia de revolução do local

Em primeiro lugar vamos examinar, para o caso da revolução do local, qual é a constelação de condições favoráveis ao desenvolvimento do processo revolucionário que são objetivas, ou seja, independentes da intenção e da posição dos sujeitos (imaginando que isso seja possível).

Como vimos, essas condições se referem a uma conjunção particular de vários fatores interdependentes: novo ambiente político mundial (instalado depois da queda do Muro, abrindo a possibilidade de democratização das relações internacionais), inovação tecnológica (sinergização entre tecnologias de comunicação em tempo real com tecnologias miniaturizadas de informação em tempo real, amplamente disponibilizadas), nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local (abrindo novas possibilidades de democratização das relações políticas intralocais, interlocais, entre o local e o microrregional, o estadual, o nacional, o regional e, em suma, entre o local e o global).

Portanto, nesse sentido “forte” do conceito (e da hipótese que o sustenta), a localização é o aspecto objetivo da revolução do local.

Em segundo lugar vamos ver qual é a constelação de condições necessárias para fazer eclodir ou desencadear o processo revolucionário que são subjetivas, quer dizer, que dependem de sujeitos intencionados que as reúnem a partir do seu trabalho militante de organização e ação políticas.

Tais condições são sempre: a existência de um certo número de agentes, imbuídos de objetivos congruentemente inspirados por visões de futuro (i.e., uma classe de utopias) conformes ao – ou sintonizáveis com o – processo objetivo em curso (no caso, de localização), capacitados para elaborar e implementar estratégias compatíveis e para adaptá-las às mais diversas circunstâncias, conectados em formas organizativas capazes de gerar e replicar medidas e procedimentos que materializam tais estratégias.

Baseados nas evidências disponíveis podemos afirmar que, na revolução do local, tais fatores se apresentam de uma maneira bastante diferente de como compareciam na velha revolução estatal-nacional. Como veremos a seguir, na revolução do local:
i) os agentes estão dispersos e não reunidos sob disciplina em um contingente centralizado;
ii) seu trabalho não visa ocupar lugares de poder e, portanto, sua militância não se resume a uma luta para desalojar os velhos ocupantes desses lugares;
iii) seus objetivos são os de promover o desenvolvimento humano, social e sustentável, de pessoas e comunidades, setores e organizações nos quais se inserem;
iv) sua estratégia é baseada em micromudanças de comportamentos e na capacidade de difusão e amplificação dessas mudanças por intermédio das redes sociais; e
v) suas táticas são as de resistência ou geração de identidade dos novos movimentos sociais que dão origem a comunidades de projetos (e.g., ambientalistas, pelos direitos humanos e pela universalização da cidadania, feministas, ecumênicos, pacifistas, pelo fortalecimento da sociedade civil e pela promoção do voluntariado etc. e, sobretudo, os dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa em redes sociais e de processos de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local).


Evidências da revolução do local

Vamos considerar aqui apenas uma classe particular de evidências, que se refere mais especificamente ao comunitarismo reflorescente, de caráter inovador, ou seja, aos novos movimentos localistas que poderiam ser identificados com um ideário glocalista.

De uns anos para cá, notadamente a partir do final da década de 1960 e, sobretudo, nos anos 90 do século passado, muita coisa mudou no mundo. Mas mudou “por baixo”, subterraneamente, na base da sociedade. Essa mudança se revela no comportamento de comunidades e organizações.

Parece que está em curso uma grande revolução silenciosa, que está alterando os padrões de relação entre o Estado e a sociedade. É a revolução do local.

Já é possível juntar evidências dessa revolução do local que está alterando padrões de organização e modos de regulação na periferia do mundo, empoderando molecularmente as populações, aqui e acolá, sem que as pessoas situadas no centro tenham ainda se dado conta do que está acontecendo.

Parece que estamos sendo contemporâneos de uma grande mudança cujos estímulos ou “perturbações” estão partindo da periferia do sistema e não do centro... Em uma sociedade em rede, tais perturbações podem ser amplificadas por laços de realimentação de reforço e podem vir a transformar o sistema como um todo ao alterar o comportamento dos agentes.

Não se trata de um movimento social ou político tradicional. O que está acontecendo agora nada tem a ver com movimentos de massas impulsionados por palavras de ordem do tipo: “O povo unido jamais será vencido”. Não são “massas”, não são totalidades indiferenciadas conduzidas monotonicamente por líderes carismáticos, senão constelações de diferenças, arranjos móveis de peculiaridades... O que está acontecendo hoje talvez afirme o lema inverso daquele tão caro aos candidatos a condutores de rebanhos. Como alguém disse: “O povo desunido jamais será vencido”!

Já existe farta documentação de casos concretos de mudanças moleculares nos padrões de relação Estado-Sociedade que estão acontecendo nos mais distantes rincões do planeta. E já podem ser selecionados numerosos cases de protagonismo local, de pessoas e comunidades que se empoderaram, que ao invés de ficarem esperando uma solução “de cima”, tomaram a dianteira na solução dos seus problemas de forma inovadora.

Caberia agora focalizar o esforço de análise naquelas experiências que contribuíram para alterar as relações políticas, que inauguraram novas formas de organização (mais rede e menos pirâmide) e novos modos de mediar conflitos (mais democracia e menos autocracia). Ou seja, casos concretos de alterações mais explícitas de relações políticas, de comunidades onde pessoas estão exercitando a sua capacidade de sonhar e de fazer diferente, compartilhando seus sonhos e cooperando na busca de objetivos comuns, exercitando seu protagonismo para alavancar seus próprios recursos na solução de problemas locais, conectando-se horizontalmente – peer to peer – e tecendo redes de desenvolvimento comunitário, democratizando decisões e procedimentos e inaugurando novos processos democráticos participativos de caráter público.


Os novos agentes da mudança

Quem são os novos agentes dessa significativa mudança, ainda invisível para muitos, que já está acontecendo?

Esses novos agentes são, em geral, de dois tipos: a) pessoas comuns, que moram e trabalham nas milhares de localidades, muitas vezes periféricas, que passaram a desempenhar o papel de animadores e catalizadores de mudanças sociais na vida das suas comunidades; e b) integrantes de organizações governamentais, empresariais e da sociedade civil, em todos os níveis, que se apaixonaram pela perspectiva de induzir ou promover o desenvolvimento humano e social sustentável pela via do empoderamento molecular das pessoas comuns, que moram e trabalham nas milhares de localidades, em geral periféricas, em todas as regiões do globo. Em suma, pessoas que assumiram e estão realizando seu compromisso com o desenvolvimento comunitário, da sua própria localidade ou de outra localidade qualquer.

O número desses agentes de desenvolvimento cresceu consideravelmente nos últimos anos, acompanhando a expansão daquela parte do terceiro setor dedicada a finalidades públicas, a descentralização e as mudanças introduzidas no desenho dos programas governamentais, as propostas de responsabilidade social empresarial e, inclusive, em virtude de um certo desapontamento ou desencantamento com as formas tradicionais de militância sindical e político-partidária. De sorte que não se trata mais de um contingente reduzido de militantes e profissionais outsiders, como eram vistos, por exemplo, os velhos comunitaristas ou os novos “localistas”, no mesmo bolo dos ambientalistas e das feministas (para citar os três exemplos de movimentos contemporâneos de resistência aos rumos da globalização excludente, considerados por Manuel Castells) (2).

Não se pode saber exatamente quantos são. O “exército” desses novos militantes – ou, melhor, o anti-exército desses novos participantes –, se incluirmos os agentes locais (e, mesmo assim, na pior estimativa, apenas um pequena porcentagem dos membros de fóruns, conselhos, agências de desenvolvimento locais e similares), deve perfazer um total considerável.

Os números serão significativos, não há dúvida. Dentro de alguns anos poderemos ter dezenas de milhares de agentes de desenvolvimento espalhados pelo mundo afora, indo aonde ninguém vai, vendo coisas que não vemos, testemunhando micromudanças peculiares e que só podem ser percebidas por quem imergiu, para valer, em configurações sociais peculiares.

O mais importante aqui, porém, não é a quantidade. O importante é conhecer as condições necessárias para o desencadeamento de processos inovadores que possam se replicar por si mesmos. O importante é compreender a nova “lógica” da mudança social que chamamos de desenvolvimento em uma sociedade-rede. Por isso, o mais importante agora é conhecer as novas características desses agentes.

Não são propriamente militantes. A palavra, aliás, não é boa. O conceito de militância evoca um paralelo militar. Seria melhor dizer que são participantes que, em sua grande maioria, carregam, das características da velha militância, o desprendimento e o espírito de doação próprios do voluntariado hodierno. Mas existem também entre eles novos profissionais vinculados a instituições governamentais e não-governamentais dedicadas à capacitação para a gestão-empreendedora de assuntos públicos e negócios privados. O importante é que, mesmo quando remunerados, o que os impulsiona é o desejo, o sonho e a visão: o desejo e o desejo de materializar o desejo; o sonho e a vontade de adquirir as capacidades requeridas para realizar o sonho; a visão e a disposição de desenvolver habilidades e competências para viabilizar a visão. Nesse sentido parece que a melhor maneira de caracterizá-los é dizendo que são, todos, empreendedores, inclusive e principalmente, novos empreendedores políticos.

Essa nova geração de agentes-empreendedores, diferentemente dos militantes à moda antiga, não caminham cantando uma mesma canção, com “a certeza na frente e a história na mão”. São, simplesmente, pessoas que começaram a acreditar na sua própria capacidade de fazer diferente e não de repetir uma fórmula qualquer.

Não são freqüentadores de assembléias estudantis ou sindicais. Não são levantadores de crachás em convenções partidárias. Não são animadores de comícios eleitorais.

Não são participantes de manifestações, repetidores de palavras de ordem. Como escreveu Pierre Levy (ainda em 1994, no livro “A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço”), “quando os participantes de uma manifestação gritam as mesmas palavras de ordem, sem dúvida constituem um agenciamento coletivo de enunciação. Mas pagam por essa possibilidade um preço não-desprezível: as proposições comuns são pouco numerosas e bem simples, mascaram as divergências e não integram as diferenças que singularizam as pessoas. Além disso, a palavra de ordem em geral preexiste à manifestação. É raro que cada um dos participantes tenha contribuído para sua negociação ou seu surgimento. A manifestação, como o voto, só possibilita aos indivíduos construir para si uma subjetividade política pela pertença a uma categoria (“os que retomam as mesmas palavras de ordem”, ou “os que se reconhecem em tal partido” etc.). Quando todos os membros de um coletivo formulam (ou assim se supõe) as mesmas proposições, o agenciamento de enunciação coletiva encontra-se no estágio da monodia ou do uníssono” (3).

Ora, o que se busca agora é a sinfonia. “Este novo modelo musical” – assinala Levy – “poderia ser o coral polifônico improvisado. Para os indivíduos, o exercício é especialmente delicado, pois cada um é chamado ao mesmo tempo a: 1) escutar os outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3) encontrar uma coexistência harmônica entre sua própria voz e a dos outros, ou seja, melhorar o efeito de conjunto. É necessário, portanto, resistir aos três “maus atrativos” que incitam os indivíduos a cobrir a voz de seus vizinhos, cantando demasiado forte, a calar-se ou a cantar em uníssono. Nessa ética da sinfonia o leitor terá percebido as regras da conversação civilizada, da polidez ou do savoir-vivre – o que consiste em não gritar, em ouvir os outros, em não repetir o que eles acabam de dizer, em responder-lhes, em tentar ser pertinente e interessante, levando em conta o estágio da conversa...” (4). Isso poderia, conclui Levy, “assumir a forma de um grande jogo coletivo, no qual ganhariam (mas sempre provisoriamente) os mais cooperativos... os melhores produtores de variedade consonante... e não os mais hábeis em assumir o poder, em sufocar a voz dos outros ou em captar as massas anônimas em categorias molares” (5).

O fato é que esses novos agentes estão aprendendo (e estão nos ensinando) a ver as coisas de outro modo. O que os comove não são tanto as necessidades das populações, mas as suas potencialidades. Como não se acreditam predestinados a salvar o mundo, como não imaginam possuir a fórmula (única) para resolver todos os problemas, estão mais preocupados com as multifárias possibilidades e oportunidades, com as iniciativas de coletividades que contam com seus próprios ativos para superar os seus problemas.


Uma realidade desconcertante

Já existe um número suficiente de evidências para apoiar a conclusão de que estamos vivendo agora em um tipo de sociedade onde a dinâmica da mudança social está, ela própria, mudando velozmente e onde o papel do empoderamento molecular das populações periféricas está adquirindo, pela primeira vez, uma importância decisiva em qualquer estratégia de mudança social.

Todavia, tudo parece tão novo – e, até certo ponto, tão desconcertante – que muita gente fica em dúvida e quer saber, com toda sinceridade, como isso poderia acontecer; ou seja, como é que, animando processos de desenvolvimento local em pequenas localidades periféricas, com PIB baixíssimo, fora dos circuitos por onde passam os grandes fluxos de capital do mundo globalizado, pode-se impulsionar uma mudança significativa no processo de desenvolvimento de países inteiros.

Muitas pessoas querem saber “qual é o milagre” pelo qual pequenas ações, diversificadas, fragmentadas e feitas, descentralizadamente, sem um comando unificado, envolvendo pouquíssimos recursos financeiros, podem vir a ter um impacto ponderável nas condições de vida de grandes contingentes populacionais.

Já abordei esse tema, de um ponto de vista mais abstrato e com um viés ainda inevitavelmente especulativo, ao tratar dos supostos de uma teoria sistêmica do capital social. A hipótese de trabalho que considerei foi a seguinte. Pequenas perturbações introduzidas na periferia dos sistemas estáveis afastados do estado de equilíbrio podem se amplificadas por laços de realimentação de reforço, se espalhando para o sistema todo e modificando o comportamento dos agentes que interagem em termos de competição e de cooperação.

Tenho defendido a tese de que essa propagação amplificada da perturbação ocorre na medida em que o sistema apresente a estrutura (ou “corpo”) de rede e que sua dinâmica (ou “metabolismo”) seja democrática.

Quanto mais rede, ou seja, quanto mais conexões horizontais forem estabelecidas entre os nodos (as pessoas e as organizações) – ou quanto mais múltiplos forem os caminhos (ou arestas) entre esses nodos (ou vértices) – e quanto mais democráticos (no sentido de mais diretos e participativos) forem os modos de regulação de conflitos adotados por uma coletividade humana estável, mais chances existirão de uma pequena ação ser amplificada, vindo a produzir um grande resultado, desde que essa ação introduza um novo tipo de comportamento no sistema e que seja, ela própria, feita de modo sistêmico.

Ou seja, desde que ela incida (ainda que tendo como foco inicial apenas uma sub-região particular do sistema) sobre os mecanismos ou processos pelos quais os comportamentos são mantidos e reproduzidos. Nas sociedades humanas esses mecanismos e processos se relacionam aos padrões de organização e aos modos de regulação, às maneiras como o poder se distribui e como os conflitos são resolvidos. Em outras palavras, desde que a mudança introduzida seja política.
Esses casos são diferentes de muitos outros casos de sucesso onde um empreendedor individual conseguiu atingir seu objetivo e realizar um grande feito.

A diferença está na política. Se uma ação, mesmo pequena, limitada, circunscrita a um âmbito restrito da esfera pública, consegue alterar relações de poder e modos de regulação de conflitos (i.e., se for uma ação com conseqüências propriamente políticas) e se ela for capaz de introduzir um novo comportamento político, aumenta em muito a possibilidade do resultado dessa ação se expandir, desse novo comportamento introduzido contaminar o seu entorno e, mesmo, se replicar para outras regiões do espaço e, por incrível que pareça, até mesmo para outras “regiões do tempo” (e, nesse último caso, quando isso acontece é sinal de que ela pode estar inventando uma nova tradição). A possibilidade de uma intervenção política pontual, com tais características, se expandir aumenta na razão direta do grau de “enredamento” (ou de reticulação) da sociedade.

Ora, se é assim, a tarefa principal daqueles que se propõem a promover ou induzir o desenvolvimento deveria ser a de articular redes sociais. Tudo indica que quem fizer isso estará construindo condições para o desenvolvimento com uma eficiência e uma eficácia muito maiores do que quem estiver preocupado apenas em impulsionar o crescimento econômico, estimular o aparecimento de empresas, aumentar o salário mínimo ou distribuir renda por meio de programas compensatórios estatais.

O motivo pelo qual as pessoas olham com desconfiança para pontos de vista como esse é o mesmo motivo pelo qual existe uma realidade escondida, que quase ninguém vê. É o mesmo motivo pelo qual as pessoas não percebem a revolução silenciosa que está em curso neste momento, que está alterando os padrões de relação entre Estado e sociedade em localidades de todo o mundo.

Existe uma grande dificuldade de as pessoas verem a revolução do local acontecendo porque existe uma grande dificuldade de as pessoas entenderem e aceitarem esses novos pontos de vista. Fomos adestrados para perceber as coisas e não as relações e os processos. Intoxicados pela ideologia do crescimento, valorizamos apenas as mudanças de quantidade e sequer levamos em conta as mudanças de qualidade. Ainda achamos que uma mudança significativa no comportamento coletivo só pode ser desencadeada quando a maioria das pessoas aderir a um novo comportamento. Carregamos ainda o fardo de uma tradição política que via as sociedades como grandes massas a serem conduzidas por líderes ou vanguardas possuidoras de algum saber.

Não vemos as coisas “se-fazendo” e “se-mudando”. E não compreendemos a dinâmica pela qual as mudanças são transmitidas no interior daquilo que chamamos de sociedade. Manuel Castells nos ensina que, a cada dia que passa, as nossas sociedades estão adquirindo as características de uma sociedade-rede. Mas só muito recentemente tem se desenvolvido uma nova ciência dedicada à análise das redes sociais.

As sociedades humanas tornam-se sistemas cada vez mais complexos, que estão adquirindo rapidamente características de sistemas adaptativos. A sociologia necessária para analisar essas coisas ainda precisa ser inventada (ou reinventada). O caminho mais promissor são as novas teorias do capital social – sobretudo aquelas que tentam adotar um ponto de vista sistêmico e utilizar o instrumental das teorias da complexidade.


Novos atores institucionais

Um aspecto fundamental dessa questão é a emergência de novos atores institucionais que passaram a se dedicar à promoção do desenvolvimento. Com efeito, estão surgindo novos atores institucionais – ao lado do Estado e do mercado – e sem os quais não estaria sendo possível a emergência de uma nova concepção e de uma nova prática de mudança social.

Estou falando do chamado terceiro setor (que é uma denominação para a ‘nova sociedade civil’, aquela esfera da realidade social composta por entes e processos que não são estatais nem mercantis).

Antes de qualquer coisa é preciso deixar claro que nem todos os novos agentes de desenvolvimento que estão surgindo na atualidade pertencem ao terceiro setor. Muitos deles trabalham em governos, em todos os níveis, ou em empresas privadas – o que é um sinal de que a mudança está alcançando todos os setores. Todavia, sem a participação do terceiro setor não estaria ocorrendo esse fenômeno que estamos chamando de revolução do local.

Por quê? Porque o terceiro setor, pela sua diversidade, pela sua racionalidade e “lógica” de funcionamento, enfim, pela sua dinâmica própria, introduz elementos novos que reconfiguram os padrões de relação antes vigentes.

Dentre os elementos novos introduzidos pela participação do terceiro setor, destacam-se a capacidade de empoderar molecularmente os coletivos e a capacidade de juntar pessoas e organizações com base em relações de parceria.

Ora, o que significa esse primeiro elemento, a capacidade de empoderar molecularmente? Significa a “força da dispersão”. Em sistemas complexos como as sociedades humanas, ao contrário do que se acreditava, a força decisiva para realizar mudanças sociais não vem necessariamente da capacidade de um projeto de unir, em um todo homogêneo e coeso, vontades individuais e coletivas – mas sim da sua capacidade de se difundir, de se imiscuir, de se adaptar, de se modificar, de contaminar “viroticamente”.

O segundo elemento se refere à introdução de relações que, conquanto estabelecidas em sociedades onde existe conflito, não são baseadas, fundamentalmente, na disputa ou no confronto, ou em considerações de correlação de forças.

A nova sociedade civil (ou o terceiro setor) atua, freqüentemente, junto com o Estado e com o mercado. Mas não faz muito sentido buscar qualquer tipo de equilíbrio de forças entre essas três esferas da realidade social. Só teria sentido essa busca se estivéssemos falando da interação de sujeitos em conflito. Mas Estado, mercado e nova sociedade civil são esferas da realidade social, e não sujeitos políticos em conflito.

Por outro lado, o conceito de equilíbrio não é bom para sistemas complexos como as sociedades. Sociedades são sistemas que só se desenvolvem se estiverem afastados do estado de equilíbrio. O que não quer dizer que não sejam sistemas estáveis. Mas estabilidade nada tem a ver com equilíbrio. Tudo indica que o que é necessário alcançar não é um "equilíbrio de forças", mas uma sinergia entre iniciativas provenientes desses três setores. Por quê? Porque nenhum deles, isoladamente, é suficiente para promover o desenvolvimento desse sistema complexo e estável, que só pode se desenvolver quando afastado do estado de equilíbrio, chamado de sociedade humana.

Mas não estou falando da “sociedade civil organizada”, nossa velha conhecida. Aliás, foi somente a partir de meados da década de 90 que parte dessa “sociedade civil organizada” (em geral corporativamente ou partidariamente) tomou consciência de que existia uma outra sociedade civil (“desorganizada”) muito maior do que ela e começou a desconfiar que, em sistemas complexos como as sociedades humanas (como escreveu Frank Herbert em 1969 em “O Messias de Duna”), “não reunir é a derradeira ordenação” (6). Estou falando mesmo da “força da dispersão”.

Ora, a “força da dispersão” quando combinada com a “força da parceria” constitui um fator irresistível para a mudança, pela base, dos comportamentos dos agentes que interagem em termos de competição e cooperação.

Isso explica a constatação de que os novos agentes de mudança estão, eles próprios, se comportando de modo bem diferente dos militantes políticos tradicionais. Como vimos, não estão muito preocupados em ocupar posições nos centros decisórios. Não estão sendo movidos pela vontade de denunciar e combater alguém. Estão sendo comovidos pela descoberta de potencialidades latentes, pelos imensos ativos que existem e que ainda estão escondidos. E estão buscando, cada vez mais, celebrar parcerias para dinamizar tais potencialidades.

Não é, portanto, por acaso, que esses novos agentes de desenvolvimento que estão surgindo sejam, em grande parte, participantes de organizações do terceiro setor.


A “força da dispersão” e a “força da parceria”

Falei da “força da dispersão” e da “força da parceria”. Uma estratégia para induzir o desenvolvimento humano e social sustentável deve se basear em uma aposta no papel dessas “forças”. Seu objetivo deve ser liberar tais “forças”, o que pressupõe a avaliação de que elas ainda estão aprisionadas pelos sistemas políticos vigentes em nossas sociedades.

Pois bem. O que chamamos de revolução do local só está acontecendo porque, aqui e acolá, essas “forças” estão podendo agir mais livremente. Em outras palavras: tem gente se associando, com base na cooperação, para fazer coisas que nós não sabemos e não podemos controlar.


“O povo desunido jamais será vencido”

Percebo como tudo isso é difícil de entender e aceitar, sobretudo para aquela parte da minha geração que foi formada ouvindo lemas como “o povo unido jamais será vencido”, derrubando altares e entronizando no lugar dos velhos santos cooperativos e pacifistas (como Francisco ou Tereza) novos líderes bélicos competitivos (guerrilheiros românticos, como o Che, ou “senhores da guerra” condutores de povos, como Mao), nos quais passamos a depositar nossas melhores esperanças quando nos diziam que era preciso juntar e acumular forças para destruir os responsáveis pela bad society em que vivíamos. Se agora vem alguém dizendo o que parece ser exatamente o contrário – ‘o povo desunido jamais será vencido’, ‘desunido’ no sentido de não aglomerado como massa, não conduzido monotonicamente pelas mesmas diretivas (“de cima” ou “de fora”), porém disperso-e-conectado, tirando dessa dispersão e dessa conexão toda a sua força, por empoderamento molecular – ficamos no mínimo desconfiados ou inseguros.

Desconfiança e insegurança em relação ao que está acontecendo subterraneamente se explicam. São coisas que estão dentro da nossa cabeça. Uma cabeça ainda ocupada pela velha idéia de revolução dos séculos 19 e 20, para a qual a revolução do local simplesmente não existe porquanto não tem um plano, não tem um comando (uma direção revolucionária), não tem um ator central (um contingente organizado de agentes revolucionários submetidos a alguma disciplina) e não tem um programa.

Mas, como vimos na seção anterior, a revolução do local tem, in potentia, princípios éticos norteadores, uma concepção de quem deve governar, uma compreensão de quais são as reformas essenciais a serem feitas, uma visão de futuro desejada e uma modalidade de transformação política preconizada (e já praticada em muitas experiências). Evidentemente, na medida em que não existe um centro irradiador-condutor, tais características são atribuídas pela análise e não assumidas explicitamente pelos sujeitos (dispersos) como um programa comum. São, todavia, características conformes tanto às evidências da revolução do local (em termos subjetivos) quanto ao processo (objetivo) de localização atualmente em curso no mundo.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) “Pode portanto dizer-se que a política é guerra sem derramamento de sangue e, a guerra, política sangrenta”. Cf. Tsé-Tung, Mao (1936). “Problemas estratégicos da guerra revolucionária na China” in Escritos Militares. Goiânia: Libertação, 1981.
(2) Cf. Castells, Manuel (1996). O Poder da Indentidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
(3) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.
(4) Idem.
(5) Idem-idem.
(6) Herbert, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

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