23/05/2008

13 | GLOCALIZAÇÃO E ESTADO-NAÇÃO

O Estado não vai desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão que será transformado, mas não é certo se tal transformação será necessariamente glocalizante. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização.

A glocalização não é um movimento contra o Estado nacional. Ocorre que a mudança social em curso no mundo tem se dado, pelo menos até agora, em âmbito supranacional (global) e subnacional (local). Como já assinalei no capítulo sobre a globalização, a democracia realmente existente no interior das repúblicas e dos governos representativos modernos [de âmbito nacional] não tem acompanhado as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de globalização [na verdade, de glocalização]. Com efeito, tais inovações têm surgido, simultaneamente, na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). O “corpo” e o “metabolismo” do Estado-nação ainda permanecem, todavia, como uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Basta ver como estão organizados os sistemas político e eleitoral, as burocracias, os mecanismos verticais (em geral clientelistas) de oferta das chamadas políticas públicas e os padrões de relação entre Estado e sociedade ainda vigentes na maior parte, senão na totalidade, dos Estados-nação do globo.

Isso significa, é bom repetir, que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação atual, embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.

Ora, novos sistemas globais de governança [como os que seriam exigidos por uma rede planetária de miríades de comunidades interdependentes – aduzo agora], para serem realmente novos, deverão ser frutos de novos arranjos de atores, de uma nova arquitetura de rede e de novos modos democráticos (de democracia em tempo real, de ciberdemocracy), conectando identidades individuais e coletivas – sócio-territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas (novas empresas) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião subnacionais e transnacionais) – para além da identidade única do Estado-nação.

É necessário identificar as insuficiências ou inadequações do Estado-nação para tentar prever que tipo de transformação ocorrerá na sua estrutura e no seu funcionamento por força do processo em curso de glocalização.


As três insuficiências ou inadequações do Estado-nação

Em primeiro lugar, voltando a Daniel Bell, constatam-se duas principais insuficiências ou inadequações do ponto de vista da sua operacionalidade administrativa: o Estado-nação é grande demais para dar conta da dimensão local e pequeno demais para dar conta da dimensão global.

Em segundo lugar, o Estado-nação, na sua forma atual, não se dá muito bem com o que Claus Offe (1999), denominou de “trajetórias dominantes de mudança social a que todos nós... estamos expostos de forma direta” (1). Em recente ensaio (“A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade”), Offe identificou três trajetórias atuais de transição: a democratização, a globalização e a pós-modernização.

Pois bem. A forma Estado-nação atual admite a democracia política, representativa e formal, mas coloca obstáculos ou retarda a velocidade do processo de democratização na direção da democratização da sociedade e da adoção de modos de regulação mais participativos e mais substantivos. Sobretudo, no plano explicitamente político, impõe limites à chamada radicalização (ou democratização, como prefere Giddens) da própria democracia (2). Isso no âmbito interno. No âmbito externo, por sua vez, o Estado-nação não consegue promover o casamento entre a manutenção da soberania nacional e a simples adoção da democracia formal na sua relação com os outros Estados, curvando-se ao realismo político, o qual constitui, como todo mundo sabe, uma orientação substancialmente autocrática (e os que negam isso só o podem fazê-lo em nome do mesmo realismo político).

Além disso, a forma Estado-nação atual não convive muito bem com a globalização, que lhe retira poder. Como assinalou Castells em um ensaio de 2001, “confrontado com fluxos globais de capital, de produção, de comércio, de gestão, de informação e de crimes, o Estado-nação foi perdendo, na última década, boa parte do seu poder... A crescente falta de operacionalidade do Estado-nação para resolver os problemas econômicos, de meio ambiente, da insegurança cidadã produz uma crise de confiança e legitimidade em boa parte da população em quase todos os países... [De sorte que] o Estado é cada vez mais inoperante no global e cada vez menos representativo no nacional” (3).

Por último, o Estado-nação, na sua forma atual, também está sendo indiretamente questionado pela redescoberta ou pelo renascimento (como assinala Offe) “de tradições religiosas e estéticas locais que são adotadas como formas simbólicas de resistência à uniformidade da cultura global e que dão origem a uma política cultural pós-moderna da identidade e diferença” (4), ou diretamente confrontado (como afirma Castells) por numerosos atores sociais que, “golpeados pelas tormentas da transição histórica para uma nova economia e um novo paradigma tecnológico, abandonados por um Estado que concentra suas energias em navegar no encapelado oceano da globalização, desconfiados de políticos ineficazes e, freqüentemente, cínicos e corruptos... se refugiam nas trincheiras de identidades construídas com base em sua experiência e seus valores tradicionais: sua religião, sua localidade, sua região, sua memória, sua nação e sua cultura étnica. E identidades de gênero ou, em algumas ocasiões, sua identidade eletiva, constitutiva de um sistema alternativo de valores” (5). Assim, prossegue Castells, “ao questionamento do Estado-nação pelos fluxos globais de capital, comércio e informação se acrescenta o solapamento de sua legitimidade por identidades singulares que não se reconhecem na cidadania abstrata de uma democracia cada vez mais retórica, e a serviço de uma minoria globalizada” (6).

Castells vai mais além ao supor que, “se essas tendências se confirmarem, na era da informação, na qual já nos encontramos, poderemos desembocar em uma justaposição generalizada de mercados globais e tribos identitárias enfrentando-se sobre as ruínas do Estado democrático e da sociedade civil, que foram construídos com tanto esforço no trajeto histórico da era industrial” (7).

Nem tanto. O que ocorre, ao meu ver, é que, como o próprio Castells afirma, citando o ensaio de Guéhenno (1993) sobre o fim da democracia, “o conjunto da construção do Estado-nação democrático da era industrial, baseada nos conceitos inseparáveis de soberania nacional e representação democrática cidadã, entra em crise” (8). Mas entra em crise, sobretudo, porque sua forma antiga não foi capaz de se adequar às novas dinâmicas introduzidas pela transição histórica – inclusive no sentido da democratização (com a queda dos “muros” que mantêm o isolamento das populações imposto pelo Estado, visando ao seu controle pelo confinamento dentro de “fronteiras” sócio-político-culturais) e da glocalização (ou seja, da formação de uma nova cultura, conforme a uma nova sociedade cosmopolita global e de um reflorescimento da perspectiva comunitária ou da volta ao local) – e não porque, supostamente, esteja sendo atingido nos seus melhores valores de democracia e cidadania universais (o que é muito questionável, de vez que democracia e cidadania existem, a rigor, apenas “para dentro” no Estado-nação industrial).

Não se trata de travar uma luta contra o Estado-nação e a favor da promessa utópica de um mundo sem fronteiras nacionais contida na (ou prenunciada pela) glocalização. Trata-se apenas de reconhecer que o Estado-nação está sendo atingido não propriamente pelas suas virtudes e sim pela sua incapacidade de se adaptar a um mundo que mudou – o que, convenhamos, parece muito mais lógico se quisermos interpretar o que de fato está ocorrendo, ao invés de valorar a globalização negativamente para tentar responsabilizá-la pela derruição de conquistas arduamente construídas et coetera et tal.

Por outro lado, o Estado não vai mesmo desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão que será transformado. E nem é certo se tal transformação será necessariamente democratizante, globalizante e pós-modernizante (para mencionarmos as trajetórias dominantes da transição, segundo Offe) ou glocalizante (como prefiro sintetizar). Talvez haja uma reação a essa transição, com um recrudescimento do estatismo, que tudo fará para manter um sistema internacional cristalizado em algumas poucas dezenas de núcleos duros de poder formalmente democrático “para dentro” e substancialmente autocrático “para fora” (ou de um número menor de blocos pluri-nacionais seguindo a mesma receita) por meio da instalação de um “estado de guerra” generalizado no mundo.

Não se sabe. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização. O que se pode avançar desde agora, entretanto, é que dificilmente uma reação regressiva como essa teria sucesso na ausência de “estado de guerra” (“quente” ou “fria”, não importa), daí a tremenda importância que adquirem, nos tempos atuais, os movimentos pela paz. Voltarei a esse ponto.

Em terceiro lugar, o Estado-nação, na sua forma atual, revela-se necessário porém francamente insuficiente para a promoção ou a indução do desenvolvimento. Ou seja, nesse campo existem coisas que precisam ser feitas e que não podem ser feitas pelo Estado, senão, em alguns casos, pelo mercado e, em outros, pela sociedade civil ou, ainda, por parcerias intersetoriais entre Estado e mercado, Estado e sociedade civil, mercado e sociedade civil e Estado, mercado e sociedade civil. Ou, para usar os termos empregados por Claus Offe (ver Texto 12), existem coisas que devem ser feitas pelo Estado, pelo mercado e pela comunidade ou por combinações desses “três fundamentos da ordem social, e em uma mistura que consiga evitar que cada um deles se sobreponha aos outros e os elimine” (9).

Para Offe, uma “mistura cívica” dessas três esferas deve evitar seis “abordagens patológicas para a construção de instituições sociais e políticas, ou ao que denominamos seis falácias. Três delas resultam da permanência de uma abordagem “bitolada” em um de nossos blocos, e as outras três advêm da premissa de que algum dos três ingredientes pode ser inteiramente deixado de fora na arquitetura da ordem social” (10). Essas falácias são: 1) a do estatismo excessivo; 2) a da capacidade de governo “pequena demais”; 3) a da excessiva confiança nos mecanismos de mercado; 4) a de uma limitação excessiva das forças de mercado; 5) a do comunitarianismo excessivo; e 6) a de negligenciar comunidades e identidade (11).

Enveredar por qualquer uma dessas “abordagens patológicas” significaria, para Offe, inviabilizar a possibilidade de encontrar a “mistura correta” dos três setores. Isso ocorre, segundo ele, quando nos deixamos impregnar por doutrinas puras que conferem a um (ou a dois) dos setores papel protagônico, excluindo os demais (ou o terceiro). Como exemplos desses tipos de doutrinas puras, Claus Offe cita o ‘estatismo social-democrata’, o ‘liberalismo de mercado’ e o ‘comunitarianismo conservador’: “Esses são os três tipos competitivos de filosofia pública que estão presentes e em competição no final do século 20” (12).

Nos termos empregados neste livro, poder-se-ia dizer que isso ocorre quando nos deixamos impregnar por ideologias estadocêntricas, mercadocêntricas ou sociocêntricas. Há, todavia, uma importante diferença entre estatismo, neoliberalismo e qualquer coisa que se pudesse propriamente chamar de “socialismo” enquanto expressão de um sociocentrismo (não o que foi chamado nos dois séculos anteriores de socialismo que, freqüentemente, era uma forma de estatismo, a não ser em algumas de suas versões anarquistas).

O sociocentrismo, que poderia teoricamente ser um problema (semelhante ao estadocentrismo e ao mercadocentrismo), é, na verdade, também, uma fonte de solução, uma saída para a contraposição estiolante Estado versus mercado. O próprio Offe reconhece que “instituições de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da tolerância podem e devem, todos, contribuir para a (assim como se tornarem beneficiários da) formação e acumulação de capital social no interior da sociedade civil. As forças associativas são mais capazes de definir e redefinir de forma constante a “mistura correta” de padrões institucionais do que qualquer autoproclamado especialista ou protagonista intelectual de uma das doutrinas “puras” da ordem social.” (13)

É, portanto, o capital social disponível no interior da sociedade civil que pode conduzir “a sintonia fina, processual, crítica e flexível, ao mesmo tempo que a recombinação imaginativa dos três componentes da ordem institucional separados” (14) (ou seja, o Estado, o mercado e a comunidade). Mas o capital social, como veremos mais adiante, é gerado, basicamente, por comunidades ou pela “capacidade de comunidade” que possuem, em maior ou menor grau, as sociedades humanas.

É por isso que a emergência de um comunitarianismo inovador incentivado pelo “associativismo cívico e de capital social, que capacita as pessoas a se engajarem em práticas associativas” (15) formando organizações não-governamentais e sem fins lucrativos, porém, além disso, sobretudo, tolerantes – comunidades “não-sectárias”, não exclusivistas ou não-discriminatórias – constitui hoje um novo caminho para a mudança social.

Ora, se o processo de glocalização incrementa tal “capacidade de comunidade” é de se esperar que ele consiga mudar o padrão de relação entre Estado e sociedade, quer mediando, a partir do “lugar” da sociedade civil, a interação entre Estado e mercado, quer aumentando o controle social sobre o Estado e orientando socialmente o mercado.


O Estado-rede

De qualquer modo, o Estado-nação não poderá mais ser como antes ou se comportar da maneira como se comportava ou se estruturar da maneira como se estruturava, se – digo: se – a glocalização avançar no rumo da formação de redes de comunidades subnacionais e transnacionais. Neste caso ele terá que se transformar, como quer Castells (por esse e por outros motivos: além da transferência de atribuições e iniciativas aos âmbitos regionais e locais, a própria crise que o assola e o desenvolvimento de instituições supranacionais), em uma espécie de Estado-rede.

Castells explica o surgimento do Estado-rede como decorrente da necessidade de novos mecanismos de coordenação. Segundo ele, “as estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade (através da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade (através da descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao fazê-lo perder poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis supranacional e subnacional. Daí a importância de que o processo de redistribuição de atribuições e recursos seja acompanhado por mecanismos de coordenação entre os diferentes níveis institucionais em que se desenvolve a ação dos agentes políticos. A fórmula político-institucional que parece mais efetiva para assegurar essa coordenação é o que denomino Estado-rede” (16).

Para ele, “Estado-rede é o Estado da era da informação, a forma política que permite a gestão cotidiana da tensão entre o local e o global” (17) (em nossos termos, o Estado transformado pela glocalização). Embora pareça muito literal, faz sentido: uma sociedade-rede não poderia admitir outro tipo de Estado que não fosse o Estado-rede. Ou, em outras palavras, em um mundo em rede o Estado só poderá sobreviver como Estado-rede.


A reação à glocalização

Todavia, isso pode não acontecer. Se não acontecer será porque a disputa em torno da glocalização conseguiu bloquear de alguma forma a expansão das conexões no interior dos âmbitos locais e interlocais ou entre o local e o global. Ou seja, se isso não acontecer será porque o ‘local separado’ conseguiu prevalecer sobre o ‘local conectado’ ou porque uma dinâmica de interdependência não conseguiu se instalar em grau suficiente para desencadear uma mudança na configuração global do sistema.

Uma outra maneira, mais otimista e também mais ousada, de dizer a mesma coisa é a seguinte: isso não acontecerá enquanto nodos locais – em número suficiente e com um número suficiente de conexões – não estiverem conectados em rede. A questão de saber qual seria a “massa crítica” necessária para desencadear a predominância de uma nova dinâmica de interdependência em âmbito global e de qual seria o grau de conectividade (a extensão característica de caminho) para reduzir o tamanho do mundo de sorte a permitir que a glocalização seja consumada é, ao meu ver, o mais importante tema da investigação de vanguarda contemporânea. Trataremos desse assunto no próximo capítulo, sobre a localização.

Todavia, tendo a achar – dada a autonomia do político – que sempre é possível bloquear, ou ao menos retardar por longo tempo, processos de mudança social. Manter o ‘local separado’ parece ser, hoje, o grande objetivo dos que querem reter o mundo congelado no modelo do equilíbrio competitivo de Estados-nação. Tal modelo, por certo, traz em si uma contradição, uma vez que, na ausência de “estado de guerra”, ele só é estável por curtos períodos e que, na presença de guerras (“quentes” ou “frias”), ele não possa admitir uma multipolarização (dificilmente administrável do ponto de vista dos interesses econômicos dos pólos individuais), tendendo para a bipolarização, a qual, por sua vez, também não se mantém por longo tempo na medida em que um pólo acaba predominando sobre o outro, levando à unipolarização que conduz, então, à multipolarização.

Diz-se que Creta (a minóica) conseguiu ficar um milênio sem guerras não obstante estar imersa em um mundo de guerras. Creta, em si, era um mundo auto-suficiente, uma ilha em todos os sentidos. Mas hoje não podem mais existir ilhas (em todos os sentidos). E não se conhece na história recente longos períodos de ausência de “estado de guerra” (“quente” ou “fria”) generalizados. A única exceção foram os dez anos entre a derrocada da URSS e o atentado ao World Trade Center, no quais, como assinala Friedman, o sistema da guerra fria foi substituído pelo que ele chama de sistema da globalização (18). Não por acaso foram aqueles os anos 90, onde pôde avançar o processo da glocalização.


A hipótese da inevitabilidade da guerra e do seu papel motor das transformações

Por certo, existem outras interpretações para o declínio do Estado-nação que ora se prenuncia.

Philip Bobbit (2002) lançou recentemente um curioso livro, chamado “O Escudo de Aquiles”, com o objetivo de apresentar uma nova visão sobre o Estado moderno – “como surgiu, como se desenvolveu e que direções podemos esperar que tome” (19).

O argumento central de Bobbit é o seguinte:

i) em 1990, com o fim da guerra fria, encerrou-se o período da ‘longa guerra”, iniciada em 1914, no qual estava em disputa a forma do Estado-nação (se comunista, fascista ou parlamentar);

ii) tal disputa ensejou o surgimento de novos fatores que questionam o velho modelo de Estado baseado em uma noção de soberania vinculada a fronteiras territoriais;

iii) em decorrência disso, um novo tipo de Estado – o Estado-mercado – está se sobrepondo ao Estado-nação; e

iv) a antiga sociedade de Estados-nação está sendo substituída por uma nova sociedade de Estados-mercado.

Bobbit elenca os cinco principais fatores que estão questionando o velho tipo de Estado-nação:

“(1) o reconhecimento dos direitos humanos como normas que requerem a adesão de todos os Estados, independentemente de suas leis internas;

(2) a ampla distribuição de armas nucleares e de destruição em massa, que fazem com que a defesa das fronteiras do Estado seja insuficiente para garantir a proteção da sociedade em seu bojo;

(3) a proliferação de ameaças globais e transnacionais que transcendem as fronteiras dos Estados – como, por exemplo, os danos ao meio ambiente ou os perigos da migração, expansão populacional, doenças ou fome;

(4) a expansão de um regime econômico mundial que ignora as fronteiras na movimentação de investimentos de capital em uma medida tal que os Estados vêem-se tolhidos na administração de seus problemas econômicos; e

(5) a criação de uma rede global de comunicações capaz de penetrar fronteiras eletronicamente e pôr em risco idiomas, costumes e culturas nacionais” (20).

Bobbit conclui então sua análise afirmando que, em conseqüência do questionamento introduzido pelas novas realidades mencionadas acima, “surgirá uma ordem constitucional que não só refletirá esses cinco fatores como também os exaltará, como demandas que apenas essa nova ordem poderá atender. A emergência de uma nova base para o Estado também modificará as premissas constitucionais da sociedade internacional de Estados, uma vez que também essa estrutura é derivada das racionalizações constitucionais internas de seus membros constituintes” (21).

Portanto, para ele, é a guerra (aqui incluída a celebração da paz pós-guerra) o motor das transformações, de vez que, no plano interno, “a interação entre inovações estratégicas e constitucionais modifica a ordem constitucional do Estado” e que, “assim como as guerras momentosas moldam a ordem constitucional de cada Estado, [no plano externo são] os grandes acordos de paz [que] dão forma à ordem constitucional da sociedade de Estados” (22).

Para Bobbit não existe sociedade civil, não pelo menos como uma esfera da realidade social subsistente fora da ordem do Estado. Sua perspectiva é tão mercadocêntrica que ele é obrigado a supor, diante da mudança social em curso no mundo atual, um processo de transição para um hipotético “Estado-mercado”, uma nova forma de Estado que estaria sucedendo a forma Estado-nação. Ou seja, para ele, parece que nem o mercado pode ter uma existência per se, uma “lógica” e uma racionalidade próprias.

Assim, ao invés de tratar dos novos padrões de interação entre Estado e mercado e dos novos padrões de interação entre Estado e sociedade civil, entre mercado e sociedade civil e entre Estado, mercado e sociedade civil, ele – simplesmente – reduz tudo à realidade estatal, supondo que todo esse processo poderá ser revelado pelo desenvolvimento de uma estranha disciplina chamada “estadística”.

Infelizmente, o extenso tratado (de quase 900 páginas) de Philip Bobbit é condicionado por suas crenças religiosas na inevitabilidade da guerra. “A guerra é inevitável... em virtude da natureza do Estado (que operacionaliza e amplifica a capacidade de cada grupo de entrar em choque com os outros) e da natureza do ser humano em grupos” (23).

Em um pós-escrito de 13 de dezembro de 2001, a propósito do atentado ao World Trade Center, Bobbit começa afirmando que “a guerra não é uma patologia que, com a devida higiene e tratamento, pode ser plenamente prevenida. A guerra é uma condição natural do Estado, que se estruturou de modo a constituir um instrumento eficaz de violência em nome da sociedade. É como a morte – embora possa ser adiada, virá quando tiver de vir e não pode ser evitada indefinidamente” (24). Parece que todo o tratado de Bobbit, de certa forma, foi escrito para dar razão a uma citação que faz de Joseph Conrad, o qual escreveu (em “Notes on Life and Letters”, Pennsylvania State University: 2001): “A história da vida na Terra deve, em última instância, ser a história de uma guerra realmente implacável. Nem seus companheiros, nem seus deuses, nem suas paixões deixarão o homem em paz” (25).

Ao comparar a guerra a um desiderato biológico, fatal como a morte, Bobbit naturaliza a guerra. Ela faria parte da “biologia” da sociedade humana, como se estivesse geneticamente inscrita. Em outras palavras, o ser humano de Bobbit é geneticamente competitivo e geneticamente programado para solucionar o conflito de modo destrutivo. Daí decorre a sua teoria hobbesiana do Estado.

É uma pena porque, apesar disso, a periodização introduzida por Philip Bobbit poderia ajudar a compreender melhor o século 20 (ver Texto 5). Ou, pelo menos, poderia ajudar a compreender o significado dos anos 90, como uma espécie de interregno no que tange à instalação de um estado de guerra generalizado (embora ele não diga – e, ao que parece, nem pense – isso).


Um software diabólico

Ocorre que não estamos mais na década de 1990. Nos primeiros anos do presente milênio, ao que tudo indica, a “America’s new war” está se instalando, ou seja, está sendo novamente inicializado um software diabólico: um “estado de guerra” generalizado no mundo (e de novo tipo: ao mesmo tempo focalizado e “quente”, aplicado preventivamente contra potenciais inimigos localizados – os Estados-nação “fora da lei” – e universalizado e “frio”, contra um inimigo invisível, o terrorismo globalizado). Sobretudo essa última forma, ‘o estado de guerra permanente contra o inimigo invisível e onipresente’ é a maior ameaça que poderia ser concebida e praticada contra a planetarização.

Reconheço que as dificuldades atuais são imensas para manter o mundo como um quebra-cabeça de peças rígidas compostas de locais separados diante dos interesses multilaterais. Seria preciso, por exemplo, tirar “do ar” ou controlar a Internet, o que não agradaria muito aos sistemas financeiros e comerciais já globalizados. Mas, ainda assim, creio que se pode retardar por longo tempo o processo de emersão da sociedade rede (e do seu correspondente Estado-rede).

Quero dizer que o avanço da glocalização não ocorrerá por força de qualquer determinação extra-política, por algum tipo de desdobramento de uma tendência histórica imanente. Embora a glocalização não teria podido começar sem um conjunto de condições objetivas determinadas (como a inovação tecnológica telemática, por exemplo) seu desfecho está em disputa. E se, no âmbito global, a planetarização pode ser enfreada pela ação política de atores nacionais poderosos (como os USA na “Era Bush” e seus aliados), no âmbito local isso será muito mais difícil de fazer. Esse, aliás, é um dos sentidos da expressão ‘revolução do local’.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Offe, Claus. (1991). “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.
(2) Ver Epílogo.
(3) Castells, Manuel (1991). “Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.
(4) Offe: op. cit.
(5) Castells: op. cit.
(6)-(8) Idem.
(9)-(15) Offe: op. cit.
(16)-(17) Castells: op. cit.
(18) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(19) Bobbit, Philip (2002). The Shield of Achilles. New York: Alfred A. Knopf – Randon House, 2002 (publicado no Brasil como A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003).
(20)-(25) Idem.

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