23/05/2008

2 | GLOBALIZAÇÃO E CAPITALISMO

A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.

Na segunda metade da década de 90 começaram a aparecer também outros pontos de vista sobre a globalização, que pagavam menos tributos ao reducionismo da visão econômica. Pesquisadores como Anthony Giddens, David Held, Anthony McGrew e Manuel Castells, entre outros, começaram a ver que o fenômeno não se restringia ao aspecto exclusivamente econômico, como continuaram enfatizando alguns organismos financeiros (como o FMI e, até os dias de hoje, os seus críticos, de esquerda ou de direita – inclusive alguns de seus antigos funcionários, como Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, para o qual, em suma, quando alguém fala de globalização está se referindo a “remoção das barreiras ao livre comércio e a maior integração das economias nacionais”) (1).

No final do século passado, Anthony Giddens (1999) já havia considerado um erro ver a globalização como um “fenômeno quase exclusivamente em termos econômicos... A globalização – escreveu ele – é política, tecnológica e cultural, tanto quanto econômica” (2). Outros pesquisadores, por sua vez, começaram a perceber que o fenômeno da globalização tinha raízes mais antigas (uma parte das quais, talvez a mais significativa, lançada uns dez anos antes da “descoberta” de Levitt) e só começou a se revelar de fato, naquilo que tinha de mais inédito e surpreendente, uns dez anos depois da publicação do “A Globalização dos Mercados”.

Pois bem. Afirmei acima que para analisar corretamente o processo de globalização é preciso admitir, como ponto de partida, que uma nova sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião, ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do final dos anos 80.

A conjunção desses dois fatores, no dealbar dos anos 90, possibilitou uma mudança tão rápida no funcionamento da sociedade humana em nível global como jamais se viu na história. Creio ser essa mudança o fenômeno que interpretamos atualmente como globalização.


Inovação tecnológica e condições políticas favoráveis

Com efeito, as inovações tecnológicas que possibilitaram o atual processo de globalização surgiram na década de 1970, com a revolução das TICs (tecnologias de informação e comunicação). Por um lado, com o surgimento dos primeiros satélites de órbita estacionária, que viabilizaram a comunicação em tempo real entre dois pontos quaisquer do planeta (e, depois, da fibra ótica, da transmissão eletromagnética em uma faixa maior de freqüências, da utilização do laser, da telefonia digital etc.). E, por outro lado, com a invenção do microprocessador e do microcomputador. A união, sinérgica, dessas duas tecnologias, possibilitou que pessoas pudessem se conectar com pessoas superando as barreiras do tempo e do espaço. No entanto, tudo isso somente veio a ocorrer, em escala significativa, vinte anos depois, em meados da década de 1990, por meio de uma rede de redes de computadores capazes de se comunicar entre si chamada Internet.

Simultaneamente, as condições políticas que permitiram que o atual processo de globalização ocorresse só se reuniram a partir da queda do Muro. Nesse aspecto tinha razão Thomas Friedman quando disse, em 1999, que “o mundo vagaroso, estável e fragmentado da Guerra Fria, que dominara o cenário internacional desde 1945, foi substituído por um novo e bem lubrificado sistema interconectado, chamado globalização” (3). Para Friedman, “a globalização é o sistema internacional que substituiu o sistema da Guerra Fria”, no qual os Estados-nação detinham em suas mãos a quase totalidade da capacidade ordenadora (4).


Difusão mundial do capitalismo

Embora enfatize a importância das condições políticas, a visão de Thomas Friedman ainda é centrada predominantemente no mercado, sobretudo na combinação de livre mercado com inovação tecnológica. Para ele, “a idéia que dá impulso à globalização é o capitalismo de livre mercado – quanto maior a liberdade de atuação das forças de mercado e quanto mais ampla a abertura da economia para o livre comércio e para a competição, mais eficiente e mais próspera será a economia. A globalização significa a difusão do capitalismo de livre mercado para praticamente todos os países do mundo. A globalização também conta com o seu próprio conjunto de regras de economia – normas que giram em torno da abertura, da desregulamentação e da privatização da economia” (5).

Friedman, como se vê – e ele não esconde –, está possuído por aquela ideologia que Ulrich Beck chama de ‘globalismo’. Para se deixar possuir por tal ideologia é necessário, antes de qualquer interpretação do fenômeno da globalização como triunfo do liberalismo, aderir à crença de que o capitalismo de livre mercado constitui a alternativa mais eficaz de organização social.

Visões como essa, evidentemente, geraram e continuam gerando fortíssimas reações por parte daqueles que não têm motivos para aderir a tal crença (seja porque já abraçaram utopias igualitárias, seja porque já estão suficientemente impregnados por ideologias contrárias, baseadas no papel suficiente do Estado como protagonista único e exclusivo do processo de organização das sociedades); e também por parte daqueles que, como registrou o próprio Friedman, “foram violentados ou deixados para trás pelo novo sistema” (6).


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000. Anthony Giddens considerou um erro ver a globalização como um “fenômeno quase exclusivamente em termos econômicos... A globalização é política, tecnológica e cultural, tanto quanto econômica”. Para Giddens, as mudanças em curso no mundo atual “estão criando algo que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global. Somos a primeira geração a viver nessa sociedade, cujos contornos até agora só podemos perceber indistintamente. Ela está sacudindo nosso modo de vida atual, não importa o que sejamos. Não se trata – pelo menos no momento – de uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva. Ao contrário, ela está emergindo de uma maneira anárquica, fortuita, trazida por uma mistura de influências... A globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora”. Assim, para Giddens, “é errado pensar que a globalização afeta unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivíduo. É também um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas... A globalização não somente puxa para cima, mas também empurra para baixo, criando novas pressões por autonomia local. O sociólogo americano Daniel Bell descreve isso muito bem quando diz que a nação se torna não só pequena demais para resolver os grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos”. Avançando mais nessa linha de raciocínio, Giddens percebe que “a globalização é a razão do ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo”.
(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. Mais adiante veremos que a queda do Muro é um evento cujas conotações simbólicas são muito mais profundas e abrangentes do que parecem à primeira vista. A queda do Muro de Berlim representa a queda de muitos outros muros, o fim de muitas separações, ou seja, da ausência de múltiplos caminhos... É, em certo sentido, uma dessacralização do mundo (sagrado = separado), ou seja, uma des-hierarquização (de vez que a hierarquia constitui-se sempre como uma ordem sacerdotal, quer dizer, sagrada), caracterizada pela existência de caminhos únicos. A possibilidade da conexão em rede – ou seja, da existência de múltiplos caminhos – foi, aqui, o fator-chave.
(4) Idem.
(5) Idem-idem.
(6) Ibidem.

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