23/05/2008

17 | LOCALIZAÇÃO E GERAÇÃO DE IDENTIDADE

Localização não significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

O que caracteriza um local é, fundamentalmente, a sua identidade, a sua maneira de ser (o seu “way of life”, poderíamos dizer, alargando bastante a extensão do conceito designado por tal expressão).

Para caracterizar um local, as configurações particulares que o identificam devem ser estáveis, ou seja, devem ter a durabilidade necessária para gerar um padrão capaz de replicar.

Coletividades eventuais não são capazes de gerar um padrão durável. Padrões que se conformam eventualmente também se desfazem eventualmente. Comportamentos coletivos particulares gerados em filas, aglomerados ocasionais, manifestações de massa, platéias de shows e multidões em geral, dificilmente se propagam para outras regiões do tempo, isto é, não inventam tradições nem se transmitem como cultura.

Coletivos estáveis, todavia, geram padrões capazes de se reproduzir. Em outras palavras, constroem unidades culturais imitáveis, softwares capazes de “rodar” em outros coletivos; ou, se quisermos lançar mão da metáfora de Dawkins (comentada na seção anterior), criam “memes” – replicadores que instruem a construção de comportamentos (em analogia com os genes, que instruem a síntese de proteínas). Isso ocorre na medida em que certas dinâmicas endógenas se conservam por repetição. Quer dizer, para usinar um replicador é necessário dispor de “laboratórios” ou “incubadoras” sociais nos quais possa ocorrer o processo de gestação de padrões seminais de comportamento. Tal processo ocorre quando certas operações são recorrentes, sobretudo quando se instalam redes de conversações que possuem circularidades inerentes.

Geração por repetição e replicação por imitação: essas são condições para afirmar uma identidade local, sem o que se desconstitui o próprio conceito de local. Cada local é único porquanto possui uma identidade própria. Se os locais pudessem ser iguais não faria sentido o conceito de local. Ademais, cada local existe na medida em que é percebido como tal, tanto pelos seus integrantes quanto pelos que a ele não pertencem (ou não reivindicam pertencer).

Dessarte, um local só se define completamente pela sua relação com o entorno (o que é sempre um nexo com o global), pela sua maneira de interagir com esse entorno e pela sua capacidade de fazer com que esse entorno o reconheça como “um” local – determinado e diferenciado. Em termos de desenvolvimento (ou de caminho em direção a um futuro desejável por uma coletividade humana estável), afirmar uma identidade local é, ao mesmo tempo, gerar um modo-de-ser e exportar esse modo-de-ser, induzindo o entorno a copiar esse modo (ou características “meméticas” que o instruem).

Quando nos interessamos pelo processo de desenvolvimento ocorrido na Emília Romagna, na verdade estamos sendo induzidos a copiar segmentos replicáveis do seu “DNA memético”. Olhamos Bologna como um local, ou seja, como um campo configurado com um grau de estabilidade que permitiu a conservação de uma dinâmica endógena particular e procuramos então identificar quais os componentes dessa dinâmica (os seus elementos e as relações entre eles) que permitiram a produção desse ou daquele resultado desejável. Queremos descobrir os comportamentos sociais que possibilitaram a produção desses resultados. E queremos ver se é possível – abstraindo condições circunstanciais peculiares, como, por exemplo, a história e a geografia daquela região italiana – reproduzir tais comportamentos em outras circunstâncias. Não queremos copiar a experiência em si, porque sabemos que isso não é possível. Queremos copiar elementos do seu “DNA memético”, isto é, queremos importar aquela tecnologia empacotável para viajar, queremos os softwares para colocá-los para rodar em outros hardwares.

Evidentemente só podemos capturar aquelas unidades culturais que sejam imitáveis, os programas que estiverem “prontos”, os padrões de comportamento que foram gerados socialmente e autonomizados pela repetição a tal ponto que conseguem se reproduzir por si mesmos ou como se fosse por si mesmos (e é isso que significa estar “pronto para rodar”).

Tais programas existem em qualquer local que é tratado, no âmbito global, como “um” local, quer dizer, uma unidade divisável. No nosso exemplo, em Bologna, eles existem com alto grau de desenvolvimento. Se não existissem nesse alto grau, Bologna não seria um local com tanta visibilidade (ou divisabilidade).

Pois bem. O grau de desenvolvimento desses programas é a mesma coisa que o grau de desenvolvimento da sociedade que os gerou.

A afirmativa acima lança nova luz para a compreensão do processo de desenvolvimento. Dela (aliada a outras premissas) podemos inferir pelo menos três conseqüências importantes que redefinem o próprio conceito de desenvolvimento: i) todo desenvolvimento é social; ii) todo desenvolvimento é local; e iii) todo desenvolvimento local só se define completamente pelas suas conexões com o global. Mas, como o assunto será tratado no epílogo deste livro, não vamos enfrentar agora o desafio de construir argumentações para tentar justificá-las (nem enunciar as outras premissas que seriam necessárias para uma exposição lógica desses teoremas).

Existem aqui, além disso, outros problemas mais complicados para resolver. Não copiamos somente aquilo que desejamos. Freqüentemente, aliás, copiamos padrões de comportamento que não desejamos. Padrões que impedem o desenvolvimento (social) vêm se replicando há milênios por si próprios (ou como se assim fosse, quer dizer, uma vez usinados eles ganharam algum tipo de autonomia e se transmitiram). O cetro, a coroa, o bastão e a espada, constituem exemplos de símbolos de padrões que se replicam há pelo menos seis milênios e que comparecem, por incrível que pareça, na maioria das atuais projeções futurísticas contidas nos romances e nos filmes de ficção ambientados em milênios vindouros...

Mas voltando ao nosso ponto no momento, é possível mostrar que – do ponto de vista do desenvolvimento (humano, social e sustentável) – quanto mais tramada for uma coletividade, mais condições ela terá de gerar padrões capazes de se replicar. Porque quanto mais caminhos existirem entre os elementos do mundo, mais circularidades geradoras de padrões replicáveis poderão ocorrer e mais usinagem comunitária estará em andamento. Com efeito, comunidades – definidas como coletivos de interdependência – são, por excelência, as usinas de tais padrões.


O processo de localização

A localização é um processo. Todavia, o que constitui tal processo? Afirmei que a localização é, fundamentalmente, um processo de geração de identidade e de replicação de características próprias dessa identidade gerada. E afirmei também que quanto mais tramada for uma coletividade, mais condições ela terá de gerar padrões capazes de se replicar.

Como estamos falando aqui da geração de replicadores, é quase impossível – conhecendo a hipótese dos “memes” – deixar de estabelecer uma comparação com a dinâmica de replicação genética.

Embora afirmando que tratava-se de um recurso lateral de argumentação, lancei mão da metáfora de Dawkins – o “meme” – aventada há quase 30 anos por analogia com o “gene”. Este último estaria para a síntese de proteínas assim como o primeiro estaria para a construção de comportamentos. Tanto genes quanto “memes” seriam replicadores: enquanto os primeiros seriam copiados, grosso modo, por células, os “memes” seriam copiados por cérebros.

Utilizei a metáfora de Dawkins, do “meme” como uma espécie de replicador análogo ao gene, para tentar modelar o processo de transmissão cultural. Supus que seria possível fazer isso sem importar a visão neodarwinista (e determinista em termos genéticos) que compareceu na origem mesma da “teoria do meme”.

Todavia, isso não é tão simples assim.

A metáfora do “meme” é, sem dúvida, muito interessante. Mas ela tem alguns problemas graves. Em primeiro lugar ela se baseia em alguns pressupostos de “comportamento” do gene que parecem não corresponder ao que realmente se passa na reprodução e na evolução biológicas de um ponto de vista sistêmico.

Em segundo lugar ela vem acompanhada por uma concepção (neodarwinista) segundo a qual o DNA seria uma molécula intrinsecamente estável sujeita a mutações aleatórias ocasionais (1).

Em terceiro lugar, como assinala Strohman (1997), “a extensão ilegítima de um paradigma genético – que passa do nível relativamente simples da codificação e decodificação genética para o nível complexo do comportamento celular – representa um erro espistemológico de primeira ordem” (2). Ou seja, Richard Strohman adverte que há aqui uma confusão de níveis que “não dá certo”. Uma teoria que funcionava bem para explicar o código genético acabou se transformando em uma teoria geral da vida, atribuindo aos genes o papel de agentes causais de todos os fenômenos biológicos. Isso é o que se chama determinismo genético.

Ora, os problemas de concepção do papel do gene são também problemas de concepção do papel do hipotético “meme”. A analogia com o gene, que gerou o conceito de “meme”, promove uma importação desses problemas.

A concepção do determinismo genético, do DNA como uma espécie de programa autônomo (por analogia aos programas de computadores), acabou contaminando a concepção do “meme”, como se este fosse também um programa autônomo (e podemos comprovar isso facilmente lendo, por exemplo, as considerações de Dawkins, em 1998, em “Desvendando o Arco-Íris”) (3).

Qual é o problema aqui? O problema é que, no caso dos genes, ao que tudo indica, o “programa” não pode ser tão autônomo assim, uma vez que ele não está arquivado propriamente no genoma e sim em uma rede celular (que envolve muitos outros nodos além dos genes: proteínas, hormônios, enzimas e complexos moleculares) que compõe o ambiente no qual o genoma pode existir enquanto tal. No caso dos “memes”, os programas, correspondentemente, também não estão em uma espécie de “diretório memético” de arquivos (o “caldo” ou “fundo” de “memes” ou a “memesfera” aventados por Dawkins, Dennett, Blackmore e outros) – nem em algo do tipo de The Matrix (do filme dos irmãos Wachowski) – e sim em uma rede social que regula a produção e a reprodução de comportamentos.

Assim como a rede celular é um sistema complexo, com múltiplos laços de realimentação, fazendo com que os padrões de atividade genética mudem continuamente com a mudança das circunstâncias, para manter o tempo todo uma congruência dinâmica com o meio (sem o que não poderia haver isso que chamamos de vida), a rede social também é um sistema complexo e, como tal, apresenta características semelhantes; ou seja, os padrões de comportamento também surgem e se modificam na interação com o meio (sem o que não poderia haver isso que chamamos de cultura). Dessarte, a forma e o comportamento culturais manifestam-se como propriedades que emergem da dinâmica complexa das redes sociais e não pela alteração casual de “memes” que conseguiram vencer algum tipo de competição pelos cérebros que vão parasitar (e que foram copiados de forma levemente alterada pelos cérebros infectados).

Todavia, apesar disso tudo, de todos esses problemas apontados acima, continuo achando que é útil considerar a hipótese do “meme” e quero tentar dizer por quê.

O problema não me parece ser propriamente o “meme” e sim algo que possa sugerir um determinismo memético (tal como o problema não é o gene e sim o determinismo genético). Assim como a focalização exclusiva no gene embaça a visão do organismo como um todo, uma focalização excessiva no “meme” dificulta que se veja os fenômenos que ocorrem no campo de interação que chamamos de sociedade.

Mas, tal como deve existir alguma coisa como o gene – independentemente do papel mais ou menos autônomo, mais ou menos abrangente e mais ou menos determinante que queremos atribuir a isso que conotamos com o conceito de ‘gene’ –, tudo indica que deve existir também alguma coisa como o “meme” como um replicador de idéias e comportamentos.

A questão é: precisamos ou não precisamos da hipótese do “meme”? E para quê?

Creio que precisamos de alguma coisa pelo menos parecida com o conceito de ‘meme’, para explicar por que certos padrões de comportamento se replicam para outras regiões do tempo (ou o que se chama de tradição), para explicar a transmissão não-genética de comportamentos (ou o que se chama de cultura), para explicar, em suma, por que o general chinês do que seria o exército do povo se comporta de maneira tão semelhante ao general do exército norte-americano e por que o militar espartano materializava – no seu comportamento cotidiano – valores tão parecidos com os do militar inglês do século 19, dois mil e trezentos anos depois!

Parece que certos padrões acabam constituindo um sistema fechado em termos de informação e são transmitidos como mensagens, conservando de tal modo elementos do seu código básico que permitem a sua identificação. Assim, freqüentemente (em uma freqüência acima da coincidência estatística), somos capazes de identificar, por exemplo, um sacerdote católico ou um militante de certo tipo de organização mesmo que eles façam um esforço para esconder suas identidades. Por quê?

Ademais, parecem existir padrões seminais que se replicam a partir de códigos congelados e não-explícitos. Idéias que vicejam a partir de simples frases ou imagens, gerando às vezes padrões tão complexos como instituições. Isso talvez constitua o início de uma explicação para o fato, ainda misterioso, de determinadas instituições de uma civilização terem sido replicadas em outras civilizações (coetâneas ou posteriores) que não mantiveram um intercâmbio tão intenso ou uma herança tão forte assim que justificasse a fidelidade das cópias (4).

Uma coisa parece certa: padrões de comportamento coletivos (ou replicáveis por coletivos) são gerados por coletivos. Afirmei na seção anterior que os coletivos que têm mais chances de gerar padrões replicáveis são comunidades, ou seja, mundos pequenos que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social. Porque quanto mais caminhos existirem entre os elementos do mundo, mais circularidades geradoras de padrões replicáveis poderão ocorrer e mais usinagem comunitária estará em andamento.

Mas é preciso ver que comunidades em um mundo globalizado não têm quase nada a ver com as comunidades tradicionais que conhecemos em um mundo cujas partes estavam isoladas. Em um mundo interligado por laços de interdependência, onde existam múltiplos caminhos entre seus nodos-elementos, comunidades assumem um papel diferente. Nesse tipo de mundo novos comportamentos sociais usinados dentro de âmbitos comunitários podem se espalhar pela rede, contaminando o sistema como um todo à medida que podem ser amplificados por laços de realimentação de reforço, de sorte a modificar o comportamento de outros agentes do sistema ao induzi-los a realizar cópias dos “programas” gerados.

Em suma, o que chamamos de localização é realmente um processo. Uma vez desencadeado o processo, é necessário não propriamente isolamento, mas conservação e reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

Esse processo, como qualquer processo, leva um tempo. Depende do arranjo social que se conforma particularmente sobre um território (físico ou virtual). E depende, em última instância, das pessoas – conquanto tal arranjo social nunca possa ser reduzido às pessoas que o compõem, quer dizer, suas características de conjunto não podem ser obtidas a partir da simples conjunção das características individuais dos seus elementos.

Quem localiza é quem assume uma parte do território como se estivesse construindo um mundo para si. Mas só o faz enquanto inserido de uma maneira particular em um coletivo, não enquanto elemento individual. O local é, assim, criado pelo desejo coletivo. Por causa disso, o local tem “cara”, tem “gosto”, tem “cheiro” e tem um conjunto de outras características que lhe são atribuídas pelos que nele (com)vivem. São as relações intersubjetivas e comunicacionais que o constituem e não uma simples coleção de indivíduos lançados sobre uma mesma porção do planeta. O local se (com)forma, não se detecta como quem localiza um acidente geográfico a partir, por exemplo, de uma foto de satélite.

É por isso que localizar não é encontrar um local, é criar um local. Mas esse já é o tema da próxima seção.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Quem quiser conhecer uma perspectiva não darwinista, não neo-darwinista e não determinista em termos genéticos deve ler, fundamentalmente, os livros de Lynn Margulis e Humberto Maturana. E também: Ho, Mae-Wan e P. T. Saunders, orgs. (1984). Beyond darwinism: introduction to the new evolutionary paradigm. London: Academic Press; Ho, Mae-Wan e S. W. Fox, orgs. (1988). Evolutionary processes and mataphors. London: Wiley; Ho, Mae-Wan (1998). Genetic engineering: dream or nightmare? Bath: Gateway Books; Strohman, Richard (mar., 1997). “The Coming Kuhnian Revolution in Biology”, Nature Biotechnology, vol. 15 e, sobretudo o mais recente Keller, Evelyn Fox (2000). The century of the gene. Cambridge, Mass.:Harvard University Press. Para uma abordagem simplificada de divulgação, pode-se ler ainda: Harman, Willis e Sahtouris, Elisabet (1998). Biologia revisada. São Paulo: Cultrix:, 2003; e Capra, Fritjof (2002). As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2002 (em especial o capítulo seis).
(2) Strohman; op. cit.
(3) Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
(4) A acreditar no que diz o erudito Samuel Noah Kramer (por exemplo, em History Begins at Sumer. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981), parece incrível que há 6 mil anos, na antiga Mesopotâmia, já haviam se esboçado os protótipos de boa parte das instituições religiosas e laicas do chamado mundo civilizado posterior: o panteão de doze seres divinos (que depois foi replicado por praticamente todas as culturas subseqüentes), templos e sacerdotes, a monarquia, exércitos, artes da guerra e armamentos, escolas e parlamentos, justiça e tribunais, música e artes, construção, entalhação em madeira e gravação de metais, uso do couro e tecelagem, escrita e matemática e muitas outras coisas, totalizando mais de uma centena de “programas” (chamados de “ME”, espécies de “fórmulas divinas”). O mais incrível é que esses misteriosos “ME” eram conhecimentos armazenáveis. As várias versões da autêntica narrativa suméria “Enki e Inanna” sugerem, curiosamente, que os “ME” podiam ser transportados, ou seja, eram objetos físicos, como se fossem disquetes. Segundo a assirióloga Gwendolyn Leick (2001), em Mesopotâmia: a invenção da cidade (Rio de Janeiro: Imago, 2003), “ME” é um “termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis, formas de comportamento social, emoções e símbolos... que, em sua totalidade, eram vistos como indispensáveis ao funcionamento regular do mundo”.

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