23/05/2008

5 | GLOBALIZAÇÃO IRREVERSÍVEL

A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo, depende da evolução do sistema diante da bifurcação com que se defronta na atualidade.

Entendido como um processo de desconstituição do antigo sistema mundial baseado no Estado-nação, parece óbvio que a globalização é um processo irreversível. Temos hoje outros atores internacionais, além do Estado-nação. Do ponto de vista econômico, como assinala Friedman, “os países... ainda são de enorme importância, hoje em dia; mas também o são os supermercados e os indivíduos com superpoderes. É impossível compreender o sistema da globalização ou a primeira página dos jornais sem a visão da interação complexa entre esses três agentes: os Estados em choque com os Estados, os Estados em choque com o supermercados, e os supermercados e Estados em choque com os indivíduos com superpoderes” (1).

Eliminar esses outros sujeitos que atuam na cena internacional, devolvendo ao Estado-nação um papel semelhante ao que cumpria antes da queda do Muro, para tomarmos um referencial político, não parece ser uma tarefa possível. Para o mal ou para o bem (melhor seria dizer: para o mal e para o bem), o processo de globalização interligou as unidades sócio-territoriais do planeta, os diversos mundos que antes podiam viver mais ou menos isolados, de tal forma e com tal intensidade que voltar a estados anteriores de separação, implicaria realizar uma tarefa impossível: seria necessário não apenas cortar as conexões, proibir os meios de comunicação globais e os meios de transporte de pessoas e objetos, senão, também, apagar a memória das duas últimas décadas. Isso para não falar na desarrumação que tal tentativa de re-compartimentação nas unidades nacionais acarretaria na economia global, no desenvolvimento científico e tecnológico, na política internacional e, inclusive, na estabilidade sócio-política mundial. Assim, parece razoável afirmar que a globalização é um processo irreversível. No entanto, tal não significa que ela nos levará para um lugar determinado, ou melhor, determinável a priori.

É bom frisar: conquanto o processo de globalização seja irreversível e conquanto o seu sentido geral seja o da conformação de uma nova configuração planetária, não é certo a que lugar ele levará. O mundo se encontra diante de uma bifurcação e tanto pode avançar, como supõe Thompson, “na transição da era de uma economia industrial global de Estados-nação territoriais para uma ecologia cultural planetária de sistemas de governança noéticos” (2), quanto pode retroceder para formas autoritárias, com um recrudescimento do estatismo que tenderá a reinstaurar a velha ordem do “estado de guerra” em âmbito planetário, baseada em novos complexos-pólos pós-industriais militares de alta tecnologia.


Bifurcação

Mas o conceito de ‘bi-furcação’ não deve ser entendido literalmente como a existência de apenas duas alternativas, do tipo ‘civilização ou barbárie’ ou ‘ordem ou caos’. Bifurcação é o ponto crítico em que o sistema pode “optar” entre mais de um futuro possível. Atingido esse ponto crítico, a descrição determinista entra em colapso, tornando-se impossível prever o estado futuro do sistema. Tudo indica que o mundo atingiu ou está atingindo esse ponto crítico na passagem do século 20 para o século 21.

Existem vários futuros possíveis para além do bom cenário das ‘redes eletrônicas de consciência’ e do mau cenário ‘Blade Runner’, ainda que – por algum motivo que não deveria ser tão desprezado pelos analistas – mais de 90% das tentativas de antecipação da literatura de ficção científica apontem para cenários do tipo Blade Runner.

Todavia, a mudança macrocultural em curso, a mudança, como assinala Thompson, “da nossa matriz de identidade de uma cultura de desejo de compra econômica e fervor patriótico para uma nova cultura planetária, na qual a ciência e a espiritualidade [um novo tipo de espiritualidade pós-religiosa] são os pais diplóides de uma nova matriz de consciência” (3) está gerando uma reação que introduz a bipolaridade. Isso dá a impressão de que só existem duas alternativas.

Essa reação é o fato mais preocupante nos dias de hoje, porquanto não se trata propriamente apenas de uma reação à globalização (ou às suas más conseqüências, o que seria justificável) e sim, também, de uma reação às melhores promessas da globalidade. Os fundamentalismos religiosos (mas também os laicos, como o neoliberalismo e o estatismo) e as reações terroristas nacionalistas ao que Thompson chama de ‘planetização’ (e que outros, como Edgar Morin, por exemplo, chamam de ‘planetarização’) constituem ameaças gravíssimas. “Como a Inquisição e a Contra-Reforma” – escreve ele – “essas explosões reacionárias podem prejudicar muito e atrasar a transformação cultural por séculos a fio. Se a humanidade pode ou não ascender para uma identidade transcultural, na qual a ciência e um novo tipo de espiritualidade pós-religiosa possam reintroduzir a consciência plenamente individuada da pessoa em um cosmos multidimensional, é a questão dos nossos tempos” (4).

O que vai acontecer, não se pode saber de antemão. O jogo está sendo jogado.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(2) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.
(3)-(4) Idem.

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