23/05/2008

20 | LOCALIZAÇÃO E GLOCALIZAÇÃO

Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem comunidades no mundo globalizado.

O aspecto holográfico da afirmativa acima já foi abordado na seção anterior. As duas principais questões que restam para debater são as seguintes: a) que comunidades são essas que reflorescem no mundo globalizado? e, b) por que a localização do global ocorre em função direta do reflorescimento dessas comunidades?

Cada uma dessas questões poderia se desdobrar em várias outras; por exemplo: estão mesmo surgindo comunidades em um mundo pós-industrial (fenômeno que não ocorreu, a não ser vestigialmente, ou como remanescência, no mundo industrial)? Por quê? Se um novo tipo de comunidade que está surgindo implica (ou abarca) “comunidades virtuais” (ou sem base físico-territorial), tais “comunidades” poderiam ser consideradas como comunidades de fato? E depois vêm também todas aquelas questões, já colocadas por Guehénno (em 1993 e em 1999) (1), sobre se as novas comunidades de escolha que estão surgindo isolam ou unem as pessoas, constroem ou destroem o espaço público comum (e a possibilidade da política), uma vez que “o mercado global não cria uma comunidade global” etc.

Por tudo o que foi dito nas seções anteriores deste capítulo fica claro que existe uma co-implicação entre localização e comunidade. Ora, se está em curso um processo de localização, então é razoável esperar que esteja em curso também um processo de criação de comunidades. Mas que comunidades são essas?


As novas comunidades de projeto do mundo globalizado

Enquanto as velhas comunidades eram comunidades de herança (e, portanto, formadas por repetição de passado), as novas comunidades que estão surgindo, durante o processo em curso de globalização, são comunidades de projeto, ou seja, futuros desejados, projetados e antecipados em experiências concretas por coletivos humanos estáveis.

Quais são as novas comunidades de projeto? São as comunidades originadas por movimentos sociais de resistência e de geração de identidade a partir das novas temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania (não na velha noção em que tudo é “direito do cidadão e dever do Estado”, mas como direito-e-responsabilidade de todos), do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária, ensaiados em escala local.

Algumas dessas novas comunidades de projeto são virtuais (no sentido de não terem base físico-territorial), mas não todas. Algumas são sócio-territoriais mesmo, formadas em torno de processos de desenvolvimento local que estão acontecendo em povoados, distritos, bairros, municípios, microrregiões e outros âmbitos espaço-territoriais no mundo todo, como causa-e-conseqüência (ou, pelo menos, como fenômeno acompanhante) desse movimento emergente de volta ao local observado na contemporaneidade.

No entanto, boa parte dessas novas comunidades que estão surgindo são subnacionais ou transnacionais. Isso é relevante porque a não-coincidência com fronteiras nacionais indica que elas, em alguma medida, se subtraem ao controle central do Estado-nação.

O fundamental aqui não é o tamanho do território físico e sim o âmbito do espaço político. O fundamental é a capacidade construída de se autoconduzir (a self-reliance política). Para abrir um ponto de discussão com Jean-Marie Guéhenno, o fundamental são as novas “Atenas” (virtuais ou sócio-territoriais, neste sentido tanto faz, pois o que importa aqui é que sejam sociedades de parceria ou coletivos de interdependência) que vão surgir, possibilitando a universalização de novos princípios éticos norteadores: dentre outros, a liberdade como sentido da política (em uma democracia radicalizada ou democratizada) e a igualdade como possibilidade (mas não-obrigatoriedade) de inserção e participação igualmente valorizada de todos na comunidade política.


A localização do global e o reflorescimento comunitário

Pois bem. O surgimento de comunidades no mundo globalizado indica apenas que o processo de localização está acontecendo.

O local, no sentido “forte” da hipótese da localização, é sempre futuro antecipado. O reflorescimento comunitário – ou melhor, o florescimento das novas comunidades de projeto – antecipa a ecumene planetária.

Ao contrário do que se pensa comumente, a pergunta não é se isso vai ou não vai acontecer algum dia. Isso já está acontecendo. Não haverá um momento mágico do desfecho, de inauguração de uma “república planetária de comunas” ou algo semelhante. Na sociedade-rede, o que globaliza também localiza. Cada comunidade de projeto constituída no mundo globalizado antecipa o mundo como rede holográfica de miríades de “aldeias globais”. Como vimos na seção anterior, a aldeia são as aldeias; não a soma, mas a configuração geral regida por múltiplos laços de interdependência. Esse é o sentido da glocalização.


O conceito de capital social

Talvez sem ter ainda uma compreensão global do fenômeno da glocalização, muitas pessoas, sobretudo a partir da década de 1990, têm procurado trabalhar com novas categoriais analíticas – exteriores ao mundo do pensamento econômico – para tentar explicar por que comunidades tecidas por redes e redes de comunidades estão se constituindo como ambientes mais favoráveis ao desenvolvimento.

O que está acontecendo é que as pessoas estão descobrindo que as redes sociais têm muito mais a ver, do que antes se imaginava, com o que chamamos de desenvolvimento. Mas essa descoberta não se deu a partir da observação das novas dinâmicas sociais introduzidas pelo funcionamento das grandes redes mundiais, como a Internet, em meados da década de 1990. Ela é anterior. A percepção das relações intrínsecas entre rede (como padrão de organização) e desenvolvimento (como “movimento” social) data do início dos anos 60, conquanto somente nos anos 90 tenha sido possível interpretar mais completamente o fenômeno. Foi no estudo das dinâmicas sócio-políticas de pequenas localidades que antropólogos e urbanistas – como Jane Jacobs –, ainda nos anos 60, começaram a desconfiar que as redes sociais constituíam um fator decisivo para o desenvolvimento local, como se fossem uma espécie de “capital” (e imagino que a expressão ‘capital social’ tenha sido introduzida metaforicamente por Jacobs – a primeira pessoa que empregou o termo no sentido em que o estamos trabalhando a partir dos anos 70 –, não para mercantilizar uma dimensão social da vida comunitária e sim para dizer que tratava-se de uma internalidade (e de uma centralidade), de um fator tão importante quanto o capital propriamente dito, físico ou financeiro) (2).

É significativo, porém, que as relações entre rede e desenvolvimento tenham sido descobertas no local (no caso de Jacobs, em bairros e distritos que se pensavam, cada qual, como um local em termos de desenvolvimento).

É preciso ver, entretanto, se esse é um elemento fortuito ou se tais relações só poderiam ter sido descobertas no local. Contrariando, talvez, uma parte dos teóricos do capital social, opto pela segunda alternativa; ou seja, o capital social é produzido (e acumulado e reproduzido) sempre em um local. Quer dizer, em um coletivo humano estável que pensa a si próprio (e é assim visto pelos demais) como um sujeito caminhante em direção a um futuro desejado. Todas as evidências empíricas sobre a relação entre capital social e desenvolvimento foram recolhidas em localidades. Em sentido positivo, em localidades que apresentaram incrementos em seus índices de desenvolvimento em virtude da existência de redes sociais, de organizações voluntárias da sociedade civil e outras formas de sociabilidade motivadas por emocionalidades cooperativas. E, por inferência, em sentido negativo, naquelas localidades que ficaram paralisadas (ou retrocederam) em relação aos seus índices de desenvolvimento em virtude da predominância de padrões hierárquicos de organização e de modos autocráticos de regulação (como, por exemplo, um padrão vertical de relação entre Estado e sociedade e a prática do clientelismo).

Redes abertas, que não se constituem como sujeitos, não fornecem evidências suficientes de serem usinas de capital social. Ou, para usar os nossos termos, redes não localizadas não são produtoras de capital social (ou, pelo menos, com tal quantidade e/ou qualidade capaz(es) de ensejar a percepção desse “processo de produção”).

Em suma, tudo indica que capital social é produzido por comunidades. A ampliação social da cooperação, que dá origem a (ou co-origina) esse fator do desenvolvimento chamado de capital social, ocorre (ou exclusivamente, ou predominantemente) em comunidades.

Ora, como vimos, comunidades são ‘mundos pequenos’ que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social e, portanto, adquiriram mais ‘poder social’ para usinar padrões de comportamento (programas) capazes de se replicar. Esse ‘poder social’ dá a medida do capital social que ela é capaz de produzir (e é o próprio conteúdo da expressão ‘capital social’). O que chamamos de capital social é algo assim como se fosse o “combustível” que alimenta a geração de identidade e a replicação de características (que podem ser vistas como softwares que instruem a construção de comportamentos) das peculiares identidades geradas.

Dessarte, em virtude de geração por repetição e replicação por imitação, se constrói o mundo como uma rede holográfica de miríades de comunidades. E o “combustível” ou a “energia social” para isso tudo não vem de outra fonte senão da cooperação.


A cooperação como fonte de localização

Comunidades de projeto estão sendo formadas pelo que chamamos aqui de novos movimentos sociais. Que movimentos são esses? No capítulo anterior afirmamos – para estabelecer uma distinção com os velhos movimentos sociais – que eles não são os movimentos corporativos, reivindicatórios, setoriais, particularistas, reativos e reacionários e sim os movimentos que propõem alternativas de vida e convivência social aos padrões da sociedade patriarcal, autocrática e guerreira, que vigem há milênios.

Não são os movimentos embebidos por visões estatistas, regressivas e contra-liberais (baseadas na ideologia do realismo político, segundo a qual o mundo esteve, está e estará, sempre, inevitavelmente vincado pela divisão amigo x inimigo) (3) ou por visões neoliberais (baseadas na ideologia econômica ortodoxa, segundo a qual o comportamento das sociedades é uma decorrência do comportamento egotista dos indivíduos, que os impele inexoravelmente à competição entre si). E sim movimentos humanizantes, que constituem humanidade porque animados – parafraseando o que disse Morin – pelo sentimento de pertença à mesma entidade planetária-comunitária.

É importante retomar aqui que esses novos movimentos sociais não se caracterizam, predominantemente, pela vontade de poder (no sentido de serem desenhados para viabilizar a tomada e a retenção do poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra a sua vontade), pela motivação de derrotar um concorrente ou destruir um inimigo. Não são baseados em jogos do tipo ‘ganha-perde’ ou do tipo ‘o vencedor leva tudo’ e sim em jogos ‘ganha-ganha’. São, portanto, todos eles, movimentos de ethos predominantemente cooperativo.

Este é o ponto mais importante. Ninguém participa desses movimentos em virtude unicamente de uma escolha racional e sim porque se sente emocionalmente compelido a aderir a sua causa, e tal adesão, na maior parte dos casos, se dá a partir de uma identidade com a forma como eles atuam e não simplesmente por concordância intelectual com as suas finalidades declaradas.

Mas é preciso compreender de uma vez por todas que a cooperação é uma emocionalidade, não uma racionalidade. Aquilo que explica o trabalho voluntário, a ação gratuita, e que constitui, em suma, o ethos cooperativo que pode se instalar em qualquer sociedade humana, é uma emotional motivation e não apenas a rational choice.

Unicamente baseados nas teorias da escolha racional não poderíamos explicar nada ou quase nada do que acontece na emergente sociedade civil mundial e nem nas sociedades civis locais.

Não é por acaso que, dentre as principais formas de agenciamento, a sociedade civil (ou a comunidade) destaca-se como usina privilegiada de capital social, muito mais do que o Estado (que em geral extermina), ou do que o mercado (que em geral consome), esse tipo de “capital”. E isso porquanto o Estado se caracteriza pela sua racionalidade normativa, por sua “lógica” heterônoma e por seu padrão vertical de relação com a sociedade, enquanto o mercado se caracteriza pela sua racionalidade lucrativa (ou seja, visa maximizar a apropriação privada de um sobrevalor gerado, em geral, coletivamente) e pela sua “lógica” competitiva. Ora, nenhuma dessas racionalidades e nenhuma dessas “lógicas” são, por excelência, produtoras de capital social na medida em que nenhuma delas se baseia predominantemente na cooperação. Já tratei desse assunto em outro lugar e não seria o caso de reproduzir aqui os argumentos construídos para mostrar que o que caracteriza, positivamente, a nova sociedade civil (ou o chamado terceiro setor) é a cooperação (4).

Se são movimentos de ethos cooperativo que estão dando origem às novas comunidades de projeto, não é difícil mostrar por que a cooperação é fonte de localização.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Cf. Guéhenno, Jean-Marie (1993). O fim da democracia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999; e também (1999). O futuro da liberdade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
(2) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
(3) Uma parte dos velhos movimentos sociais, embora pertença à sociedade civil, por incrível que pareça, ainda está possuída por uma espécie de fundamentalismo de Estado. Esse estatismo, comum a tendências políticas de direita e de esquerda, foi exacerbado pelas reações contra-liberais ao processo de globalização surgidas na última década do século passado. Não é à toa que tais movimentos disseminam na sociedade uma cultura adversarial e visões pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas senão culpados, de vez que a sociedade humana é tomada como um campo inexoravelmente vincado pela relação amigo x inimigo. Quando na oposição aos governos, tais movimentos atuam na base do “quanto pior para o país comandado pelo inimigo melhor para mim” e, quando na situação, em geral desenham políticas públicas como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam em conta o papel da cooperação.
(4) Cf. Franco, Augusto (2003). Terceiro Setor: a nova sociedade civil e seu papel estratégico para o desenvolvimento. Brasília: AED, 2003.

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