23/05/2008

23 | A VOLTA AO LOCAL

A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e sociais de dominação.

Intoxicados pela ideologia econômica dos dois séculos passados, em geral relacionamos o conceito de desenvolvimento com processos de crescimento de uma parte dos bens e serviços que são produzidos por um tipo determinado de sociedade, particularmente por uma sociedade separada das demais pelas fronteiras do Estado-nação. Economistas heterodoxos – como Hazel Henderson (1) – vêm nos alertando, há muito, para as incongruências desse tipo de abordagem. Todavia, tais economistas, ao que parece, ainda não se libertaram completamente da visão reducionista daquilo que, na língua inglesa, se chama de “economics”.

Alguns, como a própria Henderson, criticam a identificação de desenvolvimento com crescimento do PIB, entre outras coisas porque o processo de cálculo do PIB não leva em conta uma série de atividades ‘socialmente produtivas’ (como o trabalho doméstico e o trabalho voluntário) e ambientalmente necessárias à sustentabilidade da sociedade humana (como a absorção dos custos da poluição e a reciclagem de efluentes) (2). Outros, como Paul Ormerod (1994), indo mais a fundo, criticam os fundamentos da economia ortodoxa, quando observam que “a idéia de que a sociedade é constituída por indivíduos que agem a partir do cálculo racional de seus interesses pessoais impregna as teorias modernas... [a tal ponto que] na verdade, para um economista, assim como para Mrs. Thatcher, isso que chamam de sociedade é algo que não existe, só existem os indivíduos que a constituem” (3).

Há quem, cavando ainda mais fundo, tente mostrar que a economia ortodoxa é uma economia que só vale para o modelo de crescimento, podendo haver, entretanto, um modelo estacionário (de ‘crescimento zero’), supostamente – sob certas condições ambientais lato sensu – mais sustentável para as sociedades humanas.

Por último, nos anos 90, apareceram aqueles que, como Brian Arthur (1996), tomando a sociedade (e a economia) como um sistema complexo, questionam dogmas universalmente aceitos, como a famosa Lei dos Retornos Decrescentes de Turgot (1767), mostrando que tais retornos podem sim ser crescentes e, muito além disso, abrindo um novo referencial conceitual e introduzindo novos instrumentos analíticos para estudar as múltiplas interações (e retroalimentações) que se dão nesse tipo de sistema (4).


Desenvolvimento não é a mesma coisa que crescimento

Não é a hora, nem o lugar, de fazer um inventário mais sistemático desses questionamentos aos fundamentos ideológicos ou teóricos do pensamento econômico ainda predominante. Basta observar que eles são predominantes, como fez Ormerod, quando constatou que, se os economistas raramente se põem de acordo, todas as suas dissensões “dizem respeito ao comportamento da economia no nível global, no macronível, e não no micronível do comportamento individual. O micronível é que é descrito pelo modelo de equilíbrio da economia marginal e que é fundamental para a visão de mundo dos economistas ortodoxos, independentemente de quaisquer diferenças que possam ter sobre a condução da política macroeconômica” (5).

É assim que, por exemplo, freqüentemente se observa que (quase) todos os economistas, não obstante sua opção partidária ou coloração ideológica, prescrevem receituários extremamente parecidos quando se trata de indicar aos governos (sua tarefa preferida) como eles devem se comportar para promover o desenvolvimento das nações. A solução universal é sempre o crescimento que, por virtude de mecanismos intra-econômicos, traria como conseqüência o desenvolvimento humano e social. Depois eles discordam em quase tudo sobre a posologia. O remédio, contudo, é consensual.

Isso não ocorre por acaso. O crescimento é um fenômeno típico da revolução industrial. É uma invenção do século 18. E a economia é uma disciplina construída para explicar um fenômeno que não existia de modo significativo nos milênios anteriores.

Só para dar um exemplo, estima-se que entre 500 e 1500 d. C, o PIB do mundo cresceu em média apenas 0,1% ao ano, se é que tanto. A coisa só começou a exigir explicação no século 18, quando a Grã-Bretanha passou a crescer a taxas, dramáticas, de 1% ao ano (6). Foram pessoas fascinadas com esse fenômeno – como Adam Smith (1776) e Thomas Malthus (1798), entre tantas outras – que revolveram inventar uma ciência para explicá-lo. Por isso, a ciência econômica vigorante é uma ciência do crescimento. Surgiu para explicar uma coisa e, a partir daí, se pôs a explicar todas as coisas através de uma coisa única (o crescimento). E por isso é legítima a dúvida de Melvin Reder (1998), da Universidade de Chicago, de se a economia é realmente uma ciência ou uma “ideologia disfarçada” (7).

Assim, existem muitas teses que são dadas como certas pelo pensamento econômico, mas que não estão “provadas” por critérios científicos e se assemelham mais a crenças. Vejamos alguns exemplos.

Um primeiro exemplo é a confiança absoluta “na primazia do mecanismo de mercado, ao supor que as preferências dos consumidores são reveladas por suas escolhas de bens e serviços e que o mecanismo de mercado garante a satisfação dessas preferências” (8). Isso só se verifica sob certas condições ideais que, em geral, não se reúnem perfeitamente em sociedades reais. Além disso, as escolhas individuais freqüentemente não são apenas racionais, mas dependem de expectativas de recompensa emocional. E, ainda, os “átomos de interesse” são condicionados por padrões de comportamento coletivos (das “moléculas de convivência”) que se replicam pelo simples fato de que são replicáveis culturalmente e não em virtude de qualquer maximização voluntária e racional da satisfação de interesses individuais. Se não fosse assim não se explicaria por que se gasta, nos Estados Unidos, cerca de 60 bilhões de dólares em produtos de beleza e, no Reino Unido, mais de 1 bilhão de libras em comida para animais de estimação, enquanto as pessoas resistem tanto a investir em sistemas de saúde e educação ou, mesmo, na melhoria do ambiente social e natural onde vivem, o que, racionalmente, aumentaria a qualidade da sua vida e de suas famílias.

Um segundo exemplo pode ser dado pela crença de que “a mão invisível do mercado” possa promover mais equidade em sociedades onde todas as (ou várias das) variáveis do desenvolvimento (como o conhecimento e o poder ou empoderamento, para além da renda e da riqueza) estão concentradas.

Um terceiro exemplo é a ênfase atual na idéia de ‘competitividade sistêmica’ como se fosse uma verdade inquestionável ou uma descoberta universalmente aceita e demonstrada pela ciência contemporânea, quando tal conceito não passa de um modo-de-ver, de uma interpretação. Nada contra as dinâmicas competitivas características do mercado, da sua “lógica” e racionalidade próprias, mas tal idéia freqüentemente faz transbordar a dinâmica mercantil (competitiva) para a dinâmica social, levando à perigosa concepção de que sociedades devem ser competitivas, quando, ao que parece, sociedades competitivas não constituem bons ambientes para mercados competitivos. Pelo contrário, todas as evidências mostram que uma economia competitiva consegue se sustentar melhor em sociedades cooperativas. Ou seja, a economia pode – e deve – ser “de mercado”, mas a sociedade não.

E, para citar um quarto e último exemplo, o argumento – prisioneiro de uma circularidade fatal – de que crescimento leva inexoravelmente a desenvolvimento; ou de que crescimento econômico leva a desenvolvimento social e redução da pobreza se houver distribuição da renda. Ora, como já argumentei no meu livro “Pobreza e Desenvolvimento Local” (2002), “para distribuir a renda em um patamar que, supostamente, seja suficiente para promover o desenvolvimento social necessário para sustentar o crescimento é necessário ter um nível de crescimento a altas taxas e mantê-lo durante um certo tempo. A pergunta é: como fazer isso, se o alcance e a manutenção dessas taxas exigem níveis de desenvolvimento social que só podem ser atingidos quando tais taxas forem praticadas por certo tempo? Repetindo... a circularidade do argumento econômico é a seguinte: como fazer crescer o PIB a altas taxas, continuadamente e por um tempo suficiente, para que seja possível uma distribuição significativa da renda, se, para tanto, é necessário partir de patamares de capital humano e de capital social que [para tal raciocínio] só seriam alcançados com um crescimento continuado do PIB a altas taxas?” (9).

Ao final da primeira década da segunda metade do século 20 foi colocada a questão da sustentabilidade do crescimento, ou melhor, da própria sociedade humana no modelo do crescimento. Grande parte do então nascente movimento ambientalista se constituiu a partir da constatação de que não poderia haver crescimento ilimitado em um mundo finito, o que coloca um limite para a economia enquanto ciência do crescimento. Seria uma “ciência temporária”, ou seja, suas hipóteses só seriam válidas enquanto não se chegasse ao limite dos recursos, limite a partir do qual nem a explicação nem a receita do crescimento seriam válidas ou aceitáveis.

Só muito recentemente as pessoas (diante de realidades como a pobreza e a desigualdade em certas nações, que teimam em não diminuir em virtude do crescimento) começaram a se perguntar sobre os objetivos do crescimento, sobre ‘para quê’ e ‘para quem’ ele deveria ser promovido. Foi assim que começou a entrar em debate a temática do desenvolvimento humano. E, mais recentemente ainda, a temática do desenvolvimento social.


Desenvolvimento humano não é a mesma coisa que desenvolvimento social

Absorver a temática do desenvolvimento humano não foi tão difícil assim para uma parte dos economistas. Afinal, o fator humano pode sempre ser visto como um fator individual, pilar sobre o qual se assenta toda a construção econômica ortodoxa: são indivíduos que, agindo a partir do cálculo racional de seus interesses egoístas, ao fim e ao cabo constituem a sociedade. Portanto, de um ou outro modo, são os (ou alguns dos) indivíduos que, ao se desenvolverem (no caso, ao prosperarem economicamente em seus empreendimentos – como donos, sócios, acionistas ou empregados – ou ao auferirem marginalmente os resultados do crescimento geral da economia) desenvolvem as nações e, ao mesmo tempo, se desenvolvem a si próprios em termos humanos (aumentando seus níveis de renda, de escolaridade, de saúde, de expectativa de vida e de outros fatores que porventura queiramos introduzir na composição do chamado “capital humano”).

Todavia, absorver a temática do desenvolvimento social não está sendo tão fácil, na medida em que a compreensão de que “o comportamento do sistema pode ser bem diferente daquilo que é possível prever a partir da extrapolação do modelo de comportamento dos indivíduos” exige uma certa superação da abordagem mecanicista que ainda predomina entre os economistas e em todos aqueles cuja consciência foi colonizada pela sua visão de sociedade.

Quando os economistas falam em desenvolvimento social estão, em geral, pensando em desenvolvimento humano a partir de uma racionalidade econômica. E quando os policymakers (cuja consciência foi colonizada pelos economistas) falam em desenvolvimento social estão falando em usar superávits de crescimento (recolhidos em geral na forma de impostos) para fazer investimentos em saúde, educação, saneamento, habitação, alimentação e nutrição, transporte, segurança, emprego e renda e estão falando na perspectiva de que o Estado, ao fazer isso, estaria promovendo as condições necessárias e suficientes para que as pessoas pudessem ter acesso ao mundo do desenvolvimento econômico. Não estão tratando exatamente de desenvolvimento social, mas de igualdade de oportunidades para os indivíduos a partir de uma racionalidade econômica.

Ademais, em geral as pessoas confundem desenvolvimento humano com desenvolvimento social porquanto imaginam que o que chamamos de social seja apenas um sinônimo para ‘coletivo de gente’, denominação para um conjunto de elementos humanos (indivíduos) co-presentes sobre um território por longo tempo. Não percebem que o conceito de ‘social’ se aplica a um sistema complexo (a sociedade), que não significa apenas a reunião ou a soma dos indivíduos e cujas funções (que explicam o chamado comportamento social) não podem ser derivadas daquelas que são desempenhadas pelos indivíduos.

O primeiro requisito para compreender o que se chama de desenvolvimento social é partir da premissa de que a sociedade existe. É por isso que é tão difícil para o pensamento econômico ortodoxo aceitar a idéia de desenvolvimento social (na medida em que ele se baseia em uma premissa contraditória com a premissa da existência da sociedade ao supor que o comportamento do sistema econômico como um todo possa ser inferido da mera soma das suas partes individuais). Ora, como o pensamento econômico ortodoxo virou uma espécie de “religião laica”, cujos dogmas são ensinados nas escolas e reproduzidos em toda parte, sobretudo pelos noticiários da mídia, em geral as pessoas são conduzidas a pensar nos seus termos.


Desenvolvimento é sempre desenvolvimento sustentável

As mesmas dificuldades para compreender o desenvolvimento social (empregando o termo ‘social’ para designar os sistemas complexos que chamamos de sociedade humana) se revelam em relação à compreensão do desenvolvimento sustentável. Porque a sustentabilidade é uma função de integração, é um comportamento emergente em um sistema complexo que viabiliza a conservação da sua adaptação ao meio.

Os ecologistas chegaram a essa compreensão a partir da observação do comportamento dos organismos vivos e, sobretudo, a partir do estudo dos ecossistemas. Começaram a ver que o que mantinha vivos tais sistemas era o resultado de miríades de atividades em uma rede reguladora e não da condução exercida centralizadamente por um centro diretor. Tais atividades visavam estabelecer e restabelecer, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio. Se essas congruências fossem rompidas – ou seja, se a adaptação não fosse conservada – o organismo não permaneceria vivo e, portanto, o sistema não seria sustentável.

Aqui também se revela, portanto, a impotência do pensamento mecanicista para compreender e operar sistemas complexos. O importante não é fazer crescer as variáveis do desenvolvimento e sim fazê-las atingir valores ótimos (ou, mais precisamente, flutuar em intervalos mutuamente correspondentes em torno de valores ótimos) para que o efeito de conjunto possa ser a capacidade de conservar a adaptação.

Assim, para o desenvolvimento sustentável, o relevante é a configuração dos fatores do desenvolvimento em seu conjunto (como a renda, a riqueza, o conhecimento, o poder ou o empoderamento e a interação com o meio ambiente natural) e não os valores dessas variáveis tomados isoladamente. Maximizar isoladamente o valor de uma dessas variáveis levará por certo à insustentabilidade – hipótese muito difícil de ser aceita pelos ideólogos do crescimento, para os quais a coisa funciona sempre na base do ‘quanto mais melhor e não importa o resto’. Mantidos os padrões atuais de produção e consumo (cuja conformação tem a ver com a relação entre vários outros fatores do desenvolvimento), uma renda per capita, por exemplo, de cem mil dólares poderia levar uma sociedade ao colapso, como qualquer pessoa inteligente pode desconfiar, mas para eles seria algo assim como o céu.

Do ponto de vista da sustentabilidade, o desenvolvimento é, assim, sempre uma espécie de “coevolução”, de desdobramento de um condomínio interativo de fatores. E torna-se inclusive redundante utilizar a expressão ‘desenvolvimento sustentável’ na medida em que um desenvolvimento que não fosse sustentável poderia até ser crescimento (de uma ou de várias variáveis), mas não seria desenvolvimento.


Desenvolvimento local não é apenas desenvolvimento econômico

As dificuldades de compreensão do desenvolvimento como um fenômeno sistêmico também se revelam em relação ao chamado desenvolvimento local. Como tudo foi pensado para uma localidade (quer dizer, para um único tipo de localidade), particular e separada das demais, ou seja, aquela contida pelas fronteiras do Estado-nação, muitas pessoas não vêem sentido na expressão desenvolvimento local. Ou melhor, compreendem o desenvolvimento local (quando se trata de localidades sub-nacionais) sempre como um resultado decorrente do (ou intimamente associado ao) desenvolvimento nacional. Ontem, Adam Smith escreveu sobre “a riqueza das nações” e não sobre a riqueza de uma localidade qualquer. Hoje, já no declínio da era das nações-Estado, as pessoas continuam considerando apenas o desenvolvimento nacional, se bem que agora como o resultado de políticas macroeconômicas acertadas (que levem à estabilidade e ao crescimento), mas cujas medidas não podem ser tomadas em nível sub-nacional, em pequenas localidades pelas quais não trafegam os grandes fluxos de recursos do mundo econômico. Não é à toa que essa gente ande tão nervosa nos últimos anos, ao constatar que o processo de globalização retira também boa parte da autonomia macroeconômica do Estado-nação, que, em alguns casos, vira uma localidade tão periférica no mundo econômico global quanto os pequenos municípios do interior que sempre desprezaram.

As pessoas em geral têm dificuldades para compreender como é que promovendo o desenvolvimento de localidades periféricas e com baixíssimo PIB pode-se lograr um impacto ponderável no processo de desenvolvimento do País. Comparece aqui, por certo, além do preconceito econômico original (o “pecado original” do pensamento econômico, que identifica crescimento com desenvolvimento), o preconceito macroeconômico (ou dos policymakers econômicos) segundo o qual a unidade que deve ser desenvolvida é o Estado-nação e, portanto, só existe uma localidade que conta de fato. Ora, isso é uma escolha política (motivada por uma visão ideológica: o estatismo como ideologia legitimadora da construção política chamada Estado-nação) que nada tem a ver com qualquer coisa que se queira chamar de ciência. Por que não se pode pensar em uma localidade supranacional (em uma união de países, como, por exemplo, a União Européia)? E se a prática mostra que se pode pensar, nestes termos, em uma unidade de desenvolvimento supranacional, por que não se poderia pensar em uma unidade infranacional (como uma microrregião ou um município)?

O mesmo preconceito também se verifica entre os que aceitam a idéia de desenvolvimento local (aplicada a unidades infra ou subnacionais) sem terem se livrado ainda da ideologia econômica. Dentre estes há os que sustentam, por diversos caminhos argumentativos, que o fundamental é promover o desenvolvimento econômico das localidades, seja para fortalecer o mercado interno, seja para aumentar o volume ou promover a distribuição da riqueza pela multiplicação do número de proprietários produtivos, seja para – em uma época de globalização – se refugiar em espaços ainda não devastados pelos fluxos financeiros do capitalismo global para, ali então, nesses pequenos “esconderijos da história”, iniciar processos virtuosos de acumulação primitiva de capital autóctone.

Ora, a simples ênfase da palavra ‘econômico’ na expressão ‘desenvolvimento econômico local’ revela, em geral, uma incompreensão do desenvolvimento como fenômeno sistêmico. Revela aquele preconceito economicista, tão comum nas cartilhas dos dois séculos passados, segundo o qual é o econômico que “puxa” o resto e, portanto, deve ser o ponto de partida, pois que é ele que determina o comportamento das demais variáveis do desenvolvimento (e isso quando se admite que existam outras variáveis na equação do desenvolvimento, uma vez que, em geral, todos os demais fatores, além do capital físico e financeiro, são tratados como externalidades e, quando são assim tratados, são considerados também como não-centralidades). Muitas pessoas que pensam dessa maneira em geral assumem o desenvolvimento local quando se convencem de que isso será útil para gerar trabalho e renda.

Mas não se trata de multiplicar experiências de geração de trabalho e renda a partir de uma racionalidade exclusiva ou predominantemente econômica, como ocorreu nos anos 80 e em boa parte dos anos 90 do século passado. Como disse Caio Márcio Silveira (2003), “o grande diferencial das experiências de desenvolvimento local, iniciadas ao final da década [de 1990], é justamente constituir uma matriz de projetos no território (o que chamo de "usina social de projetos"), onde se combinam articulação interinstitucional e participação social (ou novos "arranjos sócio-institutucionais" ou "novas institucionalidades", vinculando ampliação da esfera pública e oferta de serviços territorializados). Como sabemos, este diferencial de ambiente não é apenas um "aspecto contextual", mas é o núcleo do processo, é aí que se dá o salto do pontual para o sistêmico” (10).

Todas as dificuldades de compreensão comentadas acima têm a ver com a ausência de visão sistêmica na medida em que, sem essa visão, não é possível perceber as múltiplas interações entre as localidades e, nem mesmo, o que significa ‘local’ – e isso para não falar da percepção do processo em curso de localização no sentido “forte” do conceito e da hipótese que o sustenta. Ademais, sem a visão sistêmica não se consegue perceber as múltiplas interações entre os diversos fatores de desenvolvimento dentro de cada localidade.

Do ponto de vista sistêmico, cada localidade é única porquanto apresenta uma combinação particular de fatores do desenvolvimento, um arranjo próprio de diversos capitais; para usar uma linguagem metafórica: o capital físico-financeiro e o capital empresarial – i.e., a propriedade produtiva –, o capital humano, o capital social e o capital natural. Assim, para caracterizar um lugar, desse ponto de vista, as configurações particulares dos fatores de desenvolvimento devem ter a durabilidade necessária para gerar um padrão capaz de replicar. Ou seja, as variáveis devem flutuar, durante um tempo suficiente, em torno de certos valores relativos e, portanto, é isso o que caracteriza o desenvolvimento daquela localidade como já comentei no capítulo anterior.

Para a visão sistêmica não há, portanto, nenhuma variável a ser maximizada isoladamente, nem há qualquer variável que possa ser responsabilizada por produzir o efeito de conjunto chamado desenvolvimento. Em determinada localidade o valor da variável ‘capital humano’ pode ser muito maior do que em outra e isso não significa que tal localidade é mais desenvolvida do que a outra. Valores menores de ‘capital humano’ podem ser “compensados” por valores maiores de ‘capital social’. Se não fosse assim o Brasil seria um país muito menos desenvolvido do que a Argentina. Ou valores menores do PIB podem ser “compensados” por altos valores do ‘capital humano’. Se não fosse assim a Islândia ou a Suíça seriam países muito menos desenvolvidos do que os Estados Unidos. As pessoas que não vêem isso em geral confundem desenvolvimento com pujança econômica ou, às vezes, infelizmente, com capacidade político-militar de se impor ao mundo, unilateralmente, a partir de posições e argumentos de força. Ora, estamos falando de desenvolvimento ou de capacidade de dominar e de mandar nos outros? Se ambas são a mesma coisa, ou se uma leva inexoravelmente à outra, então se poderia medir o grau de desenvolvimento de uma localidade pelo número de ogivas nucleares e mísseis balísticos operacionais que possui em estoque e não deveríamos ficar perdendo tempo e quebrando a cabeça com a elaboração de índices humanos, sociais ou ambientais de desenvolvimento. Mas não me consta que, apesar de seu número de ogivas e mísseis intercontinentais, alguém em sã consciência prefira viver na Rússia do que no Canadá baseado no cálculo de que lá, na primeira, exista mais desenvolvimento.

Mas há um fator ou variável na equação do desenvolvimento que, quando se trata de desenvolvimento local (quer dizer, quando queremos olhar o desenvolvimento como desenvolvimento local, encarando, portanto, o fenômeno real que acontece sempre em uma localidade concreta e não no mundo abstrato da “máquina econômica” inventada pelos economistas), se distingue dos demais, não pela sua capacidade de determiná-los (papel que se atribui tradicionalmente ao fator econômico em virtude, entre outras coisas, da (com)fusão entre crescimento e desenvolvimento) e sim pelo seu papel “ambiental”, por assim dizer; ou seja: pelo fato de estar implicado na própria geração daquilo que chamamos de localidade. Tal fator é o capital social, ou o ‘poder social’, ou a capacidade de um coletivo humano estável de se mover, de alterar suas relações internas (compreendendo que, se desenvolvimento implica sempre mudança, tal mudança é também, sempre, uma mudança social, uma vez que o conceito de desenvolvimento se aplica a sociedades humanas e não a quaisquer outros sistemas ou coleções de objetos vivos ou inanimados).

Para compreender esse ponto de vista é preciso ver as relações intrínsecas entre localização e desenvolvimento.

O nexo conotativo entre localização e desenvolvimento

[...]


A revolução do local como promoção do desenvolvimento

O objetivo da revolução do local não é tomar o poder político e sim aumentar o ‘poder social’ das comunidades que estão (re)florescendo em uma época de globalização. É por isso que ela é uma revolução social stricto sensu (e não uma revolução política feita “em nome” de uma revolução social).

Como vimos, enquanto as velhas comunidades eram comunidades herdadas (ou comunidades de passado), as novas comunidades que estão surgindo, durante o processo em curso de globalização, são comunidades de projeto, ou seja, futuros desejados, projetados e antecipados em experiências concretas por coletivos humanos estáveis.

Na velha concepção de revolução estatal-nacional, os revolucionários são reformadores de conteúdos político-ideológicos e não de estruturas e dinâmicas sociais. Mesmo declarando o contrário – e se apresentando como transformadores sociais –, na prática logram apenas trocar o “recheio” do Estado. Pregam, muitas vezes, a mudança do “caráter de classe” do Estado e outras besteiras semelhantes que significam, sempre, ao fim e ao cabo, remover (por meios violentos ou pacíficos) os velhos ocupantes para ocupar o seu lugar, via de regra mantendo, entretanto, inalterados, as estruturas piramidais (hierárquicas), os processos centralizados (e burocratizados) de comando e, sobretudo, o padrão, vigorante há milênios, de relação do Estado com a sociedade.

Na nova concepção de revolução do local, os revolucionários são inovadores, experimentadores de micromudanças de comportamento que alteram padrões de organização (mais rede e menos hierarquia) e modos de regulação (mais democracia e menos autocracia), podendo transformar de fato o padrão de relação entre Estado e sociedade.

Os novos agentes revolucionários são agentes de desenvolvimento no sentido em que o conceito foi redefinido aqui. São agentes políticos, por certo, mas naquela outra acepção apontada por Platão em “As Leis”; ou seja, não são os conhecedores da “ciência do estrategista” e sim os praticantes da “arte do tecelão”. São tecelões de redes sociais. E são experimentadores de processos democrático-participativos.

Ora, o conteúdo da expressão ‘poder social’ é o próprio conceito de ‘capital social’. Os novos agentes revolucionários são agentes de desenvolvimento porque são construtores de capital social, artífices de programas de investimento em capital social. Por quê? Porque, como vimos, o capital social é um fator sem o qual não pode ocorrer o que chamamos de desenvolvimento.

Mas assim como, em geral, economistas e policymakers ainda não se deram conta das relações entre desenvolvimento e democracia, nem mesmo os teóricos do capital social parecem ter se dado conta das relações entre a produção de capital social e o processo de democratização, ou melhor, de democratização da democracia.


A relação entre revolução do local e radicalização ou democratização da democracia

Do ponto de vista da democracia realmente existente, o relevante é que os modos de regulação de conflitos sejam não-violentos. Do ponto de vista da radicalização ou da democratização da democracia, não basta que esses modos sejam não-violentos, porquanto é necessário que eles sejam cada vez menos adversariais e cada vez mais cooperativos (“pazeantes” ou construtores de paz). Ou seja, enquanto a democracia que temos (representativa política formal) se conforma com a regulação majoritária da “inimizade política” (pela via da prevalência da vontade da maioria em eleições), uma democracia em processo de radicalização (representativa <=> participativa política <=> social formal <=> substancial) almeja transformar a “inimizade política” em “amizade política”.

Do ponto de vista da democracia realmente existente, o relevante é que haja renovação periódica do poder político do Estado-nação. Do ponto de vista da radicalização ou da democratização da democracia, isso não basta, sendo necessário que cada vez mais pessoas tenham oportunidade (por livre escolha ou voluntariamente) de participar do poder político, sobretudo naqueles âmbitos que afetem diretamente as suas vidas (i.e., nas suas localidades). Para que seja possível efetivar tal participação não basta um regime formal de liberdades políticas (asseguradas por lei), mas é preciso que as sociedades locais empoderem seus componentes. Ou seja, é necessário que exista um ‘poder social’ ensejando/viabilizando a participação dos cidadãos na polis (entendida como comunidade política).

A democracia realmente existente é uma dinâmica competitiva, voltada para a disputa pela condução (o ‘governo político’, lato sensu) do Estado-nação (em quase todos os seus poderes e em todos os seus níveis), que visa a estabelecer pactos de convivência (na medida em que todos aceitem suas regras ou sejam compelidos a aceitá-las, uma vez que tais regras, unificadas, são sancionadas na forma de lei pelo Estado). A democracia em processo de democratização introduz novas dinâmicas que visam à construção, para além de pactos de convivência, de pactos de cooperação na esfera pública para promover aquilo que Tocqueville chamou de “governo civil” (11) das comunidades (e as regras, nesse caso, são diversificadas, na medida em que emergem sempre de configurações sociais peculiares).

Ora, esse “governo civil” de Tocqueville é o antepassado em linha direta do conceito de capital social e é, assim, uma expressão daquele ‘poder social’ cujo incremento só pode se dar no local – incremento que constitui, aliás, o próprio objetivo da revolução do local.


A revolução do local e a transformação das relações políticas e sociais de dominação

Chegamos assim à última das hipóteses deste livro sobre a revolução do local. Em uma época de globalização, a volta ao local, para promover o desenvolvimento comunitário – entendido como desenvolvimento humano, social e sustentável –, é uma revolução. Essa revolução é diferente do que foi assim chamado (e praticado) nos últimos cem ou cento e cinqüenta anos, porquanto, na prática, não tem como objetivo e, na teoria, não considera como momento decisivo a troca de elites no poder do Estado-nação. Ela é diferente porque visa ao empoderamento de pessoas e comunidades e porque não imagina que seja possível fazer isso centralizadamente, por meio de um comando unificado, de uma mesma diretiva emitida “de fora” e “de cima”, porém sustenta que tal empoderamento deva ser molecular, a partir “de dentro” e “por baixo”. Ela parte da idéia de que o empoderamento molecular é a única maneira de se subtrair aos padrões hierárquicos e aos modos autocráticos que ainda predominam nas sociedades humanas.

É uma revolução com significado global que, entretanto (ou por isso mesmo), só pode ser feita no âmbito local. Atinge a todos, na medida em que é realizada em um; ou melhor, estabelece que o caminho para a transformação do todo é aquele que passa pela transformação de um. Um a um.

Há quem ache que isso não é possível, sobretudo em uma época de globalização que dissolve, dispersa, fragmenta... Mas é exatamente o contrário. Isso só é possível em uma época de globalização. É preciso dissolver mais, dispersar mais, fragmentar mais. Por quê? Porque é preciso globalizar mais para localizar mais e vice-versa.

Por isso, estou cada vez mais convencido de que grande parte de nossos problemas não decorre de excesso e sim de falta de globalização, no sentido em que o termo é empregado aqui, ou seja, como um dos aspectos de um processo de mudança social global que implica também localização. Neste sentido, o que chamamos de dominação só ocorre por insuficiência de glocalização; ou melhor: existe dominação na medida inversa da existência de globalização-e-localização, uma vez que não se conhece na história nenhum sistema ou prática de dominação que tenha conseguido se implantar na ausência de padrões hierárquicos de organização (e de modos autocráticos de regulação, que parecem lhes ser próprios).

E, por isso, faz sentido a expressão ‘revolução do local’. A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de desenvolvimento que promete transformar seculares, melhor dizendo, milenares relações políticas e sociais de dominação. Ora, se isso não é uma revolução, não sei o que poderia ser assim chamado.

De uns anos para cá muitas pessoas e organizações vêm tentando estimular essa revolução por meio de estratégias de investimento em capital social. Mas só muito recentemente estão sendo elaborados argumentos teóricos mais consistentes e reflexões mais sistematizadas sobre as milhares de experiência práticas que estão em curso, para tentar mostrar o que está “por trás” de tudo isso, ou seja, para explicitar uma “filosofia” capaz de justificar o que estamos chamando aqui de revolução do local.

Baseadas em estratégias de investimento em capital social, algumas metodologias foram construídas para induzir o desenvolvimento humano e social sustentável. Pelo menos uma parte dessas metodologias poderia ser justificada por uma argumentação como a seguinte:

a) temos evidências de que a melhoria das condições de vida e convivência social dos seres humanos depende de certas mudanças sociais que interpretamos como desenvolvimento;

b) essas mudanças coimplicam a capacidade de uma sociedade de produzir e reproduzir capital social;

c) a capacidade de produzir e reproduzir capital social é tanto maior (ou melhor) quanto mais padrões de organização em rede e modos de regulação democrático-participativos forem praticados;

d) como todo desenvolvimento é desenvolvimento social e como desenvolvimento social é mudança social e como mudança social é uma questão política, tudo depende – muito mais do que, às vezes, imaginamos – de não reproduzir uma atuação política intervencionista, verticalista e centralizadora, pois é esse tipo de atuação que extermina capital social e impede que pessoas e comunidades valorizem e desenvolvam seus próprios ativos, aproveitando oportunidades que são sempre únicas e encontrando suas próprias soluções para resolver seus problemas, da sua maneira, afirmando a sua identidade.

Portanto, para uma estratégia de investimento em capital social, induzir o desenvolvimento humano e social sustentável como forma de estimular a revolução do local é manter a esperança centrada no empoderamento molecular das populações, para que elas próprias se emancipem.

Esse trabalho de tecelão, de construir, pacientemente, a autonomia dos coletivos, da “comunidade que faz”, não pode ser substituído pela vontade política de um “chefe que faz” (por maior que seja o seu poder), nem mesmo pela confiança em um líder (por maiores que sejam seu carisma e sua gravitatem). Uma comunidade que conseguiu aproveitar uma oportunidade ou superar uma adversidade a partir de seus próprios esforços criativos, de sua própria inteligência coletiva, significa muito mais para o desenvolvimento humano e social sustentável do que transferências maciças de recursos “de cima” ou, mesmo, do que grandes mobilizações propagandísticas, rebanhos marchando, bandeiras desfraldadas – enfim, tudo aquilo que representa a monotonia (e a monodia) das manifestações de massa próprias de um mundo da “segunda onda”.


Como desencadear a revolução do local: a questão da “massa crítica”

Algumas pessoas ainda não conseguem ver como a revolução do local poderia ser desencadeada em âmbito global (isto é, no mundo inteiro) e no âmbito local (quer dizer, no interior de cada localidade). E isso ocorre porque essas pessoas, ou imaginam que seria necessário realizá-la em todas as (ou na maioria das) localidades do mundo, ou acreditam que seria preciso conseguir a adesão de todas as (ou da maioria das) pessoas de uma (e de cada) localidade.

Ora, em primeiro lugar é preciso ver que a revolução do local já está acontecendo.

Em segundo lugar é preciso ver que não é necessário (nem seria possível) “fazer” a revolução do local no (espaço abstrato do) mundo. A revolução do local (como o nome, aliás, está dizendo) é “feita” no local.

Em terceiro lugar é preciso ver que, para que o processo de localização se desencadeie em uma localidade qualquer, é necessário apenas que uma parcela da sua população, conectada entre si segundo um padrão de rede e regulando seus conflitos de modo democrático-participativo, o assuma cooperativamente. Ou seja, não é necessário engajar a população toda de uma localidade, nem conquistar a maioria dessa população.

Isso tem a ver com o que chamamos de ‘poder social’, com o ‘tamanho de mundo’ de uma localidade, com o grau de “tramatura” social, com a capacidade de mediar conflitos de modo democrático-participativo, com os níveis de confiança e cooperação existentes e, portanto, com o “estoque” ou fluxo disponível de capital social.

Sob certas condições (objetivas e subjetivas, incluindo o padrão de relação Estado-sociedade vigorante) determinados programas que instruem a construção de comportamentos favoráveis à localização, se forem ensaiados por uma pequena parcela de agentes de uma localidade, podem se amplificar e se replicar de sorte a atingir o sistema como um todo. Ou seja, uma mudança de comportamento, mesmo periférica, ensaiada em um ‘mundo pequeno’, tem mais chances de se propagar para o sistema como um todo afetando o comportamento dos outros agentes que o compõem, porquanto mundos pequenos são mundos mais susceptíveis à mudança social do que mundos grandes.

Deve haver algo como um “ponto de desequilíbrio” a partir do qual um processo de “contaminação” mais vigoroso se desencadeie. Algo assim como uma “massa crítica” detonadora. Mas, certamente, para cada configuração particular haverá uma quantidade e uma qualidade mínimas dessa “massa crítica”. E, mesmo para uma configuração particular, talvez nunca possamos conhecer, completamente e de antemão, nem os valores nem as características dessa “massa crítica” para que o processo seja detonado.

Entretanto, uma nova disciplina científica dedicada à análise das redes sociais vem avançando bastante ultimamente. Não é improvável que, daqui a algum tempo, possamos justificar o insight de Jane Jacobs (1961) (12), de sorte a estabelecer uma relação “forte” entre ‘tamanho de mundo’ (ou ‘extensão característica de caminho’ ou ‘comprimento de corrente’) e capacidade de replicação de programas que instruem a construção de comportamentos, dentro de uma mesma localidade e entre localidades diferentes conectadas em rede.

Como comentei em meu livro “Capital Social” (2001), “Jacobs estava preocupada com os fatores que tornam “viva” uma localidade, que fazem com que ela se torne aquilo que chamava de uma “Entidade real”, com a teia de relações tramada por pessoas humanas reais, que vivem naquela localidade: ela escreveu que “as inter-relações que permitem o funcionamento de um distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas específicas, muitas delas sem nada em comum a não ser o fato de utilizarem o mesmo espaço geográfico... São as relações ativas entre pessoas, geralmente líderes, que ampliam sua vida pública local para além da vizinhança e de organizações ou instituições específicas e proporcionam relações com pessoas cujas raízes e vivências encontram-se, por assim dizer, em freguesias inteiramente diferentes” (13).

Jane Jacobs está tratando de algo muito mais profundo... Ela investiga a formação do “ser social”, que chama de “Entidade real” (com ‘E’ maiúsculo): “É necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam ligação, em comparação com a população total, para consolidar o distrito como uma Entidade real. Bastam cerca de cem pessoas em uma população mil vezes maior. Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para descobrir umas às outras, para investir em colaboração proveitosa – e também para criar raízes nos diversos bairros menores locais ou de interesse específico” (14).

Surpreendentemente, a passagem acima não gerou nenhuma reflexão mais fecunda, nem por parte dos leitores-admiradores de Jacobs, nem por parte dos teóricos do capital social. Mas aqui talvez esteja, ao meu ver, uma das pistas para desvendar a complexa dinâmica das sociedades humanas.” (15)

Por outro lado – muito embora o recentíssimo experimento de Duncan Watts (2003) e outros não tenham confirmado essa hipótese – “mesmo que grupos locais sejam altamente agrupados, desde que uma pequena fração (um por cento ou menos) dos indivíduos tenha conexões de longo alcance fora do grupo, as extensões de caminho serão baixas. Isso ocorre porque a transitividade faz com que tais indivíduos ajam como atalhos, ligando comunidades inteiras umas às outras. Um atalho não beneficia apenas um único indivíduo, mas também todos os que estão ligados a ele e todos ligados àqueles ligados a ele, e assim por diante. Todos podem beneficiar-se do atalho, em muito encurtando a extensão característica de caminho. Por outro lado, mudar uma conexão local para uma de longo alcance tem apenas um efeito pequeno sobre o coeficiente de agrupamento” (16).

As investigações atuais ainda não são conclusivas e o assunto permanece em discussão em um círculo muito restrito de pesquisadores. Atualmente, porém, creio que já temos elementos suficientes para dar como certa uma coisa: quanto mais elementos ela englobar, quanto mais tramada “por dentro” e conectada “para fora” estiver uma localidade, mais chances teremos de que o processo venha a acontecer.

Talvez bastasse isso... Talvez estejamos perdendo tempo... Estimule as redes – e o “metabolismo” que parece lhes ser próprio: a democracia interativa – e tudo o mais virá. Ou não virá. Mas se não vier não é por nossa culpa e não podemos fazer nada para que venha, a não ser sucumbir à tentação de levar as coisas prontas, a partir de uma intervenção exógena, a partir de uma lógica heterônoma. E aí não vai adiantar, porquanto não conseguiremos fazer isso sem afetar negativamente o “corpo” e o “metabolismo” das redes endógenas, sem reintroduzir ou reforçar padrões hierárquicos de organização e modos autocráticos de regulação, interrompendo (ou retardando), então, o processo de localização.


O que não fazer?

Neste sentido, para “fazer” a revolução do local, é preferível não fazer do que fazer. Aliás, a célebre pergunta que deu origem ao catecismo revolucionário do século 20 (“Que Fazer?”: Lênin, 2002) deveria agora ser refeita, trocada pela sua negativa: ‘o que não fazer?’. Porque no nosso afã por realizar grandes feitos e deixar a nossa marca ou pelo desejo de moldar as sociedades de acordo com um modelo ideal em que acreditamos ou uma verdade que julgamos possuir, muitas vezes assumimos a condição de condutores de rebanhos. E aí queremos “juntar o rebanho” para levá-lo, unido, para ali ou acolá e nos transformamos, invariavelmente, em agentes de reprodução de uma idéia e de uma prática de ordem (imposta e prefigurada de antemão) que impede o empoderamento molecular das populações e a manifestação da inteligência coletiva das comunidades.

Assim, quando nos acreditamos “ungidos” ou predestinados a fazer algo pelo povo, seja a partir de posições de poder conquistadas eleitoralmente nas instituições e aparelhos do Estado-nação, seja quando tentamos, por qualquer meio, reconhecido ou não como democrático, derrubar os titulares dessas instituições e aparelhos para ocupar o seu lugar em nome de um ideal generoso e igualitário, via de regra não fazemos mais do que manter (e freqüentemente até reforçar) as estruturas iníquas que queríamos transformar.

Isso não significa que não devamos participar do processo democrático realmente existente ou que não seja importante, para a democracia, a disputa eleitoral em todos os níveis e para todos os cargos do Estado. Mas a ascensão aos poderes de Estado não ajuda a transformação da sociedade se – digo: se – não procurarmos transformar também o padrão de relação entre Estado e sociedade, começando por zelar pela qualidade da “atmosfera democrática” (para que as pessoas possam ter “ar” para respirar e, assim, possam inventar e experimentar coisas diferentes daquelas que imaginamos, nós, os que queremos conduzi-las) e por estabelecer procedimentos democráticos que evitem (ou, pelo menos, atenuem) o intervencionismo, a centralização, o paternalismo e o clientelismo. E, sobretudo, se nossa atuação não for inibidora das iniciativas locais. Já seria muito se os ocupantes do Estado se esforçassem por não fazer essas coisas.

Em geral, porém, os que ocupam cargos no Estado com o intuito sincero de ‘fazer alguma coisa pelo povo’ não compreendem que, mesmo que existissem recursos orçamentários disponíveis para transferir para a população por meio de programas compensatórios, mesmo neste caso, isso não deveria ser feito dentro do padrão ainda vigorante de relação entre Estado e sociedade. Porque, fundamentalmente, o problema não é econômico, nem micro, nem meso, nem macroeconômico. O problema é político. Noventa por cento das políticas sociais voltadas para o enfrentamento da pobreza são políticas que se alimentam da pobreza e são, ao fim e ao cabo, políticas para manter a pobreza. Por motivos politicamente óbvios.

O que não é tão óbvio assim é que quanto mais bilhões você injetar a partir do Estado, mais capital social exterminará se – digo: se – os desenhos das políticas não forem alterados; ou seja, se o padrão de relação entre Estado e sociedade não for modificado. Mas vá-se lá dizer-lhes!

Ocorre que desenvolvimento parece não ter mesmo muita coisa a ver com o que pensa boa parte dos economistas e dos policymakers. Um pequeno Estado árabe produtor de petróleo, com altíssimo PIB per capita, poderá promover a educação superior de todos os habitantes e médico em casa para todos os habitantes e residências de luxo para todos os habitantes etc. E poderá mandar todos os caras estudarem em Oxford. Pergunto: é isso? Esse hipotético Estado alcançou um patamar, desejável por nós, de desenvolvimento?

Se entendermos que todo desenvolvimento é desenvolvimento social e que desenvolvimento social é mudança social, a resposta para a pergunta acima não poderá ser afirmativa. Por mais que pareça óbvio que as pessoas devam poder sobreviver e realizar seu direito ao bem-estar material, há uma diferença entre comunidades humanas e, por exemplo, coletividades de animais. Ao gado confinado holandês, já se disse, também nada lhe falta em termos de condições sobrevivenciais. Mas, certamente, não é isso o que queremos para os seres humanos. Porque, ao contrário do que tanto se repete, não se trata apenas de melhorar condições de vida e sim de melhorar também as condições de convivência social.

Nunca é demais repetir. O ser humano, como ser individual-e-social, só se desenvolve na medida em que pode alterar condições herdadas a partir de sua própria identidade. Desenvolvimento é o poder de afirmar uma nova identidade no mundo em virtude de poder tornar dinâmicas novas potencialidades. Uma localidade deve encontrar seu próprio caminho, isto é, afirmar sua própria identidade no mundo ao realizar suas vocações e ao dinamizar suas potencialidades, que são únicas no sentido de que são próprias àquela particular coletividade.

Para concluir, não se percebe que desenvolvimento é um fenômeno sistêmico, próprio de sistemas complexos – como o são as sociedades humanas. Ora, não existe outro meio de operar tais sistemas senão pela política. Pode-se, através da política – e, nos regimes democráticos, unicamente através dela – manter ou alterar as configurações dos sistemas sociais.

Por isso, se queremos encontrar uma alternativa de desenvolvimento, o fundamental é que a política seja alterada. Se não se souber como, há uma saída: basta não fazer o que vem sendo feito. Esta já seria uma contribuição inestimável dos velhos atores políticos institucionais à revolução do local.

Os que ocupam posições políticas institucionais no Estado-nação, sobretudo nos governos, em todos os níveis, poderiam, por certo, fazer algo mais, se abrissem espaços – por meio de parcerias e de regulamentações adequadas – para que os novos movimentos sociais que geram comunidades de projeto e as organizações da sociedade civil constituídas em torno das temáticas inovadoras desses movimentos, pudessem se fortalecer e se multiplicar, gerando, cada vez mais, novas institucionalidades e novas redes participativas, ao invés de criar dificuldades ou de querer controlar ou cooptar ou absorver ou usar instrumentalmente tais movimentos para conquistar mais poder ou para se manter pelo maior tempo possível no poder.

Mas o caminho da revolução do local parece ser mesmo o da “contaminação”. E não temos como saber quanto tempo levará o processo. Em alguma medida, ele já está acontecendo. E talvez seja pensar com uma velha cabeça esperar que haja algum desfecho grandioso, um momento crucial e decisivo.

O tempo, aliás, é função da taxa de crescimento ou da velocidade de propagação das mudanças moleculares. Se há mudança, o tempo está correndo. Quanto mais mudança houver, mais tempo estará sendo ganho a favor da revolução do local.


Há muito mais coisa envolvida na revolução do local...

Entretanto, como vimos neste livro, há muito mais coisa envolvida na revolução do local.

À medida que o ‘ser social’ vai sendo reconhecido e ganhando um estatuto próprio, à medida que se vai compreendendo que as comunidades de projeto são mundos verdadeiramente humanos, à medida que nossa “mente coletiva” se concentra no local, ela pode se expandir para o planeta inteiro, antecipando, quem sabe, aquilo que, ao longo da história humana, tem aparecido em nossos melhores sonhos de futuro: a tão almejada ecumene planetária.

Com efeito, em um universo finito, tramado por múltiplas redes, local pode assumir características tão holográficas que...


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Henderson, Hazel (1999). Além da globalização: modelando uma economia global sustentável. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2003.
(2) Idem.
(3) Ormerod, Paul (1994). A morte da economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
(4) Arthur, W. Brian (1996). “Increasing returns and the new world of business”, Harvard Business Review, jul-ago.
(5) Ormerod; op. cit.
(6) Idem.
(7) Cit. por Henderson (1999). Cf. Reder, M. (1999). Economia: a cultura de uma ciência controversa. Chicago: Chicago University Press, 1999.
(8) Ormerod; op. cit.
(9) Franco, Augusto (2002). Pobreza & Desenvolvimento Local. Brasília: AED, 2002.
(10) Comunicação pessoal ao autor.
(11) Tocqueville, Alexis (1835-1840). A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
(12) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
(13) Jacobs; op. cit. em Franco, Augusto (2001). Capital Social. Brasília: Instituto de Política / Millennium, 2001.
(14) Jacobs; op. cit.
(15) Franco (2001); op. cit.
(16) Hong, Theodore (2001). “Desempenho” in Oram, Andy (org.). Peer-to-peer: o poder transformador das redes ponto a ponto. São Paulo: Berkeley, 2001.

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