Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas. Porque a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da (uma mudança global na) sociedade.
A visão de Friedman, conquanto (como frisei anteriormente) tenha o mérito de reconhecer a dimensão política da globalização como processo de mudança ora em curso no mundo, é claramente mercadocêntrica. Ele não se pergunta se alguma coisa (e que tipo de coisa) mudou no desenho da sociedade civil e nos seus padrões de relacionamento com o Estado e com o mercado para permitir que a conjunção de inovação tecnológica com livre mercado, sob condições políticas favoráveis – com o fim do sistema de “muros” da guerra fria “que dividia todo o mundo” e a introdução da ‘www’ (World Wide Web) “que une todo o mundo” – pudesse assumir uma dimensão planetária, alterando o antigo equilíbrio do sistema global (1).
Partindo de pressupostos semelhantes aos de Friedman, muita gente tenta explicar a globalização a partir do mercado, imaginando talvez que alguma coisa como uma acumulação ou incubação de forças econômicas, represadas politicamente durante 40 anos e sem meios técnicos para se expressar, de repente, quando as condições (políticas e técnicas) foram favoráveis, tivesse irrompido à luz do dia. Nas explicações dessas pessoas, os comportamentos e as normas sociais são, por certo, alterados por tal fenômeno, mas o fenômeno em si mesmo não é explicado pela alteração da estrutura e da dinâmica social, por mudanças no “corpo” e no “metabolismo” das sociedades e nem por mudanças culturais-civilizacionais. É como se as forças de mercado tivessem um comportamento autônomo, uma dinâmica imanente, inerente apenas à sua própria “esfera” e não fossem construídas historicamente pela experiência concreta das sociedades humanas.
Por outro lado, os que se contrapõem a essa visão, em geral, também não fazem tais perguntas e não tentam investigar o que mudou na sociedade para produzir o fenômeno. Reagem à ideologia ‘globalista’ (neoliberal) com uma outra ideologia, simetricamente posta, contraliberal: o estatismo.
A cruzada estatista contra o neoliberalismo
No afã de resistir às mudanças, introduzidas em especial a partir dos anos 90, no padrão de relação Estado-sociedade, a luta contra a globalização assumiu assim, em grande parte, a feição ideológica de uma cruzada contra o chamado neoliberalismo.
O estatismo (ou estadocentrismo) imagina a sociedade como dominium do Estado. Imagina que o Estado não só detém mas deve deter eternamente o monopólio do público. Imagina, hobbesianamente, que o Estado deve ser o supremo regulador dos conflitos sociais. E imagina, em alguns casos, que o Estado deva ser o protagonista único e exclusivo das mudanças sociais.
Ora, para quem pensa dessa maneira não pode mesmo haver ameaça maior do que a globalização. Porque a globalização ameaça de fato o velho status do Estado-nação. Todavia, os que se deixaram impregnar pela ideologia estatista deveriam parar e perguntar: qual é mesmo o problema para a sociedade humana? O fato de estarmos entrando em contato com realidades que não podem mais ser adequadamente enfrentadas pelas tradicionais estruturas políticas nacionais e pelos sistemas de governança atuais não deveria significar que, necessariamente, está indo tudo por água a baixo. Deveria significar, isso sim, que temos pela frente a imensa tarefa de reconstruir novas estruturas e novos sistemas que dêem conta de enfrentar os novos desafios.
Globalidade irreversível
Beck lista oito motivos que tornam a globalidade irreversível:
“1) A ampliação geográfica e crescente interação do comércio internacional, a conexão global dos mercados financeiros e o crescimento do poder das companhias transnacionais.
2) A ininterrupta revolução dos meios tecnológicos de informação e comunicação.
3) A exigência, universalmente imposta, por direitos humanos – ou seja, o princípio (do discurso) democrático.
4) As correntes icônicas da indústria cultural global.
5) A política mundial pós-internacional e policêntrica – em poder e número... com uma quantidade cada vez maior de atores transnacionais (companhias, organizações não-governamentais, uniões nacionais).
6) A questão da pobreza mundial.
7) A destruição ambiental mundial.
8) Conflitos transculturais localizados.” (2)
A esta lista poderíamos acrescentar outros tantos itens que comparecem na nova realidade do mundo globalizado e que, de algum modo, estão associados aos desafios para os quais o velho sistema de Estados-nação não está preparado:
1’) A volta ao local, ou o reflorescimento da perspectiva comunitária como alternativa de desenvolvimento, revelando a inadequabilidade do Estado-nação para interagir com as peculiaridades dos processos locais. Como assinalou Daniel Bell: a nação se tornou, simultaneamente, pequena demais para resolver os grandes problemas e grande demais para resolver os pequenos. Como exemplos poderíamos citar, no primeiro caso, as questões ambientais e as questões relacionadas aos direitos humanos, que ultrapassam os fronteiras nacionais; e, no segundo caso, as questões, sobretudo políticas, relacionadas ao desenvolvimento local (que questionam as cadeias clientelistas de intermediação de recursos públicos que sustentam todo o sistema político).
2’) O terrorismo internacional, a lavagem de dinheiro e os paraísos fiscais, o narcotráfico e os tráficos de armas, de nascituros e crianças para adoção ilegal, de pessoas para prostituição ou trabalho forçado e de órgãos.
3’) A incapacidade do Estado-nação de reprimir as novas dimensões coletivas da criminalidade e o questionamento e a deslegitimação – na prática de milícias, gangues, grupos separatistas – do monopólio da violência por parte do Estado.
4’) A produção de armas de destruição em massa, sobretudo as nucleares, químicas e biológicas (mas também as de altíssima tecnologia, como as eletromagnéticas) nas mãos de países autocráticos e nas mãos de grandes potências com pretensões imperiais.
5’) As ameaças à paz mundial representadas pela velha noção de soberania (como vêm revelando atualmente as insanidades do grupo belicista que ascendeu ao poder nos USA com George W. Bush e as novas ideologias perversas urdidas e difundidas por esse grupo, como, por exemplo, a doutrina da preempção ou da guerra preventiva).
6’) As novas doenças endêmicas e pandêmicas, provavelmente causadas por uma intervenção antrópica desarmonizante no meio ambiente natural (como a malária amazônica resultante de desmatamento e as viroses da “zona quente” da África subsaariana).
7’) O colapso da política nacional baseada no sistema de representação, ou seja, o esgotamento e a perda de legitimidade das democracias realmente existentes (transformando os processos de eleição de governantes e legisladores, como diz Thompson, em uma espécie de “cruzamento do entretenimento, dos esportes televisionados e da gestão de celebridades na cultura popular da ilusão compartilhada...” (3).
8’) A exarcebação de fundamentalismos religiosos (em maior parte ligados a correntes sectárias do islamismo, mas não só) e laicos, como o fundamentalismo de mercado (com a ampla intoxicação pelo neoliberalismo dos policymakers e decisores de vários países do mundo, disseminando visões ideológicas, pretensamente científicas, segundo as quais o ser humano seria naturalmente ou intrinsecamente competitivo e desenhando políticas públicas que não levam em conta o papel da cooperação) e o fundamentalismo de Estado (com o amplo recrudescimento do estatismo, a partir, inclusive, de uma reação contra-liberal ao processo de globalização por parte de tendências políticas de direita e de esquerda, disseminando uma cultura adversarial e visões pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas, senão culpados, de vez que a sociedade humana é tomada como um campo inexoravelmente vincado pela relação amigo x inimigo, e fazendo política de oposição na base do “quanto pior para o país comandado pelo inimigo melhor para mim” ou, quando na situação, desenhando políticas públicas como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam em conta o papel da cooperação).
(A esta nova lista ainda poderiam ser acrescentados alguns outros itens, como o protecionismo dos países ricos e as demais assimetrias do mercado internacional, ou seja, como lembra Stiglitz, as injustiças do sistema comercial global e a hipocrisia das organizações econômicas internacionais quando fingem que estão “ajudando países em desenvolvimento ao forçá-los a abrir seus mercados para as mercadorias das nações industrializadas e desenvolvidas, ao mesmo tempo que essas nações protegem seus próprios mercados.”) (4)
Para enfrentar esses novos desafios de maneira responsável, é necessário abandonar tanto a visão eufórica do globalismo econômico, que imagina que o livre jogo das forças de mercado levará, por si só, ao melhor dos mundos, quanto a visão reativa, estadocêntrica, que imagina que o fim da capacidade de impor, vertical e heteronomamente, uma ordem previamente concebida ao caos social signifique alguma coisa como a volta à barbárie. Para fazer isso é preciso partir de uma visão proativa, que aceita o desafio da mudança da realidade, tal como ela se afigura (com os seus aspectos negativos e positivos, ainda que, no momento, mais negativos do que positivos), e procura fluir junto com ela para captar o seu sentido, conhecer as suas tendências e interagir positivamente com as novas configurações de atores que ela enseja.
A nova sociedade civil
Para falar de novos atores, se o processo chamado de globalização não modificasse o comportamento dos Estados nacionais, não poderia estar emergindo, não pelo menos com a intensidade e a velocidade que verificamos na década de 1990, uma nova sociedade civil (o chamado terceiro setor). Igualmente, o reflorescimento da perspectiva comunitária – um dos sinais mais promissores dos tempos atuais – não poderia estar ocorrendo se o velho Estado-nação permanecesse tal como era antes. Foi preciso abalá-lo, desconstruir a ideologia que justificava a sua auto-suficiência, de certo modo vergar a sua espinha dorsal – sua pretensão de onipotência e sua ambição de onipresença na sociedade – para que houvesse um pouco mais de ar para respirar... e as pessoas, então, respirando por seu próprio esforço (fora dos “balões de oxigênio da grande incubadeira-Estado”), pudessem se agrupar para pensar e agir por si mesmas.
É assim que está emergindo, em toda parte em que as condições políticas o permitem, uma nova sociedade civil. Pessoas se associando a outras pessoas para fazer coisas que, voluntariamente, estão a fim de fazer – e, cada vez mais, de maneira independente de raça e credo, de língua e costumes, de território e nação –, não, predominantemente, para ganhar alguma coisa, levar alguma vantagem, destruir algum concorrente ou eliminar algum inimigo. Isso significa que estamos avançando, na prática, para a perspectiva inédita de um mundo onde seja desejável e possível a cooperação, um ‘mundo (pelo menos em parte e sob certas condições) de colaboradores’, ao invés do ‘mundo (apenas) de competidores’ (dos neoliberais) ou do ‘mundo vincado pela relação amigo x inimigo’ (dos estatistas).
Com efeito, a cooperação é (para usar uma expressão marxiana) mais ‘conforme ao ser social’ da nova sociedade civil (ou do terceiro setor) do que ao ser social do mercado ou ao ser social do Estado. Por isso, a emergência do terceiro setor (crescentemente acompanhada do reconhecimento do seu papel estratégico para o desenvolvimento social) é um fenômeno muito significativo dentro do processo de globalização.
Como qualquer pessoa inteligente pode facilmente perceber, isso nada tem a ver com perspectivas privatizantes ou com a derruição do Estado pregada pelo pensamento neoliberal ou a ele atribuída. Tem a ver com uma nova perspectiva sociocêntrica, publicizante mas não estatizante, que está podendo surgir no contexto atual do processo de globalização, mesmo que os efeitos desse processo tenham se mostrado, até o momento, em grande parte, perversos.
Portanto, para compreender adequadamente o que é a globalização temos que centrar o foco na sociedade e não apenas no mercado ou somente no Estado, desvencilhando-nos dessas duas “drogas pesadas” que turvam o pensamento, ou seja, das ideologias mercadocêntricas e estadocêntricas: o neoliberalismo e o estatismo, respectivamente.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(2) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(3) “À medida que a política do governo representativo é transformada em esporte e entretenimento pela mídia eletrônica, em um ambiente em que as pessoas ficam livres para votar na celebridade mais bem-sucedida na captação de recursos e na propaganda, a civilização tradicional volta a assumir formas distorcidas de estágios anteriores – subculturas acadêmicas de filosofias pós-modernas não populares e obscurantistas em universidades, cultos a gurus de autoridade carismática em religiões medievais e gangues de adolescentes de dominação primata.” Cf. Thompson, William Irwin. “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution” (MA: Lindisfarne Books, 2001).
(4) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.