23/05/2008

A REVOLUÇÃO DO LOCAL

“Em um universo infinito, local pode abranger algo tão gigantesco que sua mente se encolhe diante dele.”

Frank Herbert, 1976, em “Os Filhos de Duna”.

UM ÍNDICE DAS 23 TESES

Sobre a globalização

1 – O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.

2 – A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.

3 – Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas. Porque a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da (uma mudança global na) sociedade.

4 – O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

5 – A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo, depende da evolução do sistema diante da bifurcação com que se defronta na atualidade.

6 – A globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes.

7 – A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem.

8 – A saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização.

9 – A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os neoliberais (favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma diversidade de posições variantes e conforma novos campos políticos de convergência que superam tal contradição.

10 – Não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’ (mas não exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90).


Sobre a glocalização

11 – A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.

12 – A glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa entre o ‘local separado’ e o ‘local conectado’, entre ‘dependência x independência’, por um lado, e ‘interdependência’, por outro.

13 – O Estado não vai desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão que será transformado, mas não é certo se tal transformação será necessariamente glocalizante. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização.

14 – Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na dimensão local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a glocalização confere um novo status ao local, que, para ser revelado, exige também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido “forte”) da ‘localização’.

Sobre a localização

15 – O local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura” social.

16 – Quanto mais conectado é o mundo, menor ele é, porém mais potente socialmente ele é (small is powerful).

17 – Localização não significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica endógena.

18 – Localizar não é encontrar um local, é criar um local.

19 – Globalização do local tende a ser igual a localização do global.

20 – Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem comunidades no mundo globalizado.

21 – A localização está em disputa e essa disputa tenderá a pautar, em futuro próximo, os embates políticos dentro do Estado-nação.

22 – A localização é o aspecto objetivo da revolução do local, enquanto seu aspecto subjetivo é a existência de uma crescente variedade de agentes, conectados em rede, dedicados a promover movimentos sociais de resistência e de geração de identidade – que dão origem a comunidades de projeto – a partir das novas temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou solidária, ensaiados em escala local.

23 – A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares relações políticas e sociais de dominação.

GLOBALIZAÇÃO

Conquanto seja possível tecer inumeráveis análises dos diferentes aspectos econômicos, tecnológicos e culturais da globalização, não é muito fácil chegar a uma compreensão global do fenômeno. Grande parte das análises disponíveis não dá conta de captar o fenômeno da globalização no que ele tem de inédito. Essas análises são, em geral, fragmentadas, porquanto se baseiam em visões desfocadas: quer, por um lado, por uma certa euforia mercadocêntrica; quer, por outro lado, por reações estadocêntricas.

É preciso ver que o conceito de ‘globalização’ surgiu no marketing e, só depois, foi incorporado e recuperado por outras disciplinas. Já havia uma proto-ideologia (que Beck chama de “globalismo” e quase todo mundo chama de neoliberalismo) embutida no conceito inicial (1). Fomos apresentados ao tema da globalização (ou introduzidos na sua problemática) a partir de pontos de vista totalmente ou predominantemente mercadocêntricos. Na seqüência veio a crítica sociológica, da sociologia política baseada, sobretudo, na sociologia econômica. Essa crítica, ao desvelar a ideologia presente na visão inicial, se constituiu, muitas vezes, como uma rejeição do conceito e, não raro, como uma reação ao próprio fenômeno objetivo que o conceito (a idéia de globalização) queria captar. Assim, a crítica ao conceito transformou-se, em parte, em uma estiolante disputa (ideologizada) entre ideologias, contrapondo uma visão contra-liberal à visão neoliberal, uma perspectiva estadocêntrica àquel’outra, mercadocêntrica. Entrementes, o fenômeno mesmo, na sua integralidade e naquilo que lhe poderia conferir caráter distintivo de outros fenômenos sociais, passava (quase) despercebido.

Todavia, para entrar de fato no assunto é preciso partir da pergunta: qual é o fenômeno que está ocorrendo no mundo dos últimos anos e que estamos interpretando como globalização? O mercado financeiro, as multinacionais, o terrorismo internacional, a indústria do entretenimento, o McDonalds, a CNN, a Internet – tudo isso sugere que o mundo está vivendo uma nova época ou passando por um processo de mudança que foi chamado de globalização.

Em primeiro lugar é preciso responder se está ou não está havendo tal mudança, que tipo de mudança é essa, qual a sua profundidade e abrangência e qual o seu sentido.

Existem pessoas que acham que não está havendo mudança alguma significativa ou, pelo menos, alguma que mereça atenção especial. O mundo já teria passado por várias globalizações, desde a era dos descobrimentos e até antes.

Existem pessoas que acham que a mudança é de natureza fundamentalmente tecnológica e que são as novas máquinas que estão introduzindo novos comportamentos.

Existem pessoas que acham que a mudança atual decorre da liberação das forças de mercado, que, pela primeira vez, estão podendo expressar toda a sua capacidade destrutiva-criativa sem as peias impostas pelas regulações normativas, heterônomas e exógenas provenientes do antiquado Estado-nação.

Existem pessoas que acham que tudo não passa de uma tentativa das grandes corporações transnacionais para dominar o mundo, o que vai acabar configurando uma realidade social mundial composta por algumas ilhas de alto desenvolvimento tecnológico, fortemente protegidas, em um mar de pobreza e exclusão.

E existem pessoas que acham que tudo se explica por tal ou qual combinação de todos ou de alguns desses fatores: um pouco disso, um pouco daquilo.

Parto do princípio de que não é possível compreender a globalização se não se admitir que há uma mudança em curso no mundo, tão profunda e abrangente como talvez jamais tenha ocorrido antes na história conhecida. Como disse Giddens, “a globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora” (2).

Essa mudança é de natureza social. Ultrapassando as fronteiras dos Estados nacionais, ela está gerando um novo tipo de sociedade no mundo. Uma nova sociedade está sendo criada. Como sustenta Giddens, está sendo criado “algo que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global” (3). E, como escreveu Thompson, “uma nova cultura planetária está surgindo juntamente com a nossa nova economia globalizada” (4).

Creio que é necessário insistir nesse ponto de partida da análise. Uma nova sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião, ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do final dos anos 80.

A mudança em curso, por certo, é social, mas em um sentido amplo, ou seja: no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional.

Todavia, conquanto o processo de globalização seja irreversível e conquanto o seu sentido geral seja o da conformação de uma nova configuração planetária, não é certo a que lugar ele levará. O mundo se encontra diante de uma bifurcação e tanto pode avançar, como supõe Thompson, “na transição da era de uma economia industrial global de Estados-nação territoriais para uma ecologia cultural planetária de sistemas de governança noéticos” (5), quanto pode retroceder para formas autoritárias, com um recrudescimento do estatismo que tenderá a reinstaurar a velha ordem do “estado de guerra” em âmbito planetário, baseada em novos complexos-pólos pós-industriais militares de alta tecnologia.

Com efeito, sucedendo os promissores sinais de globalização política pós-guerra fria, surgidos sobretudo nos anos 90, os primeiros anos do terceiro milênio apontam para um retrocesso, com o recrudescimento do velho estatismo. Há um retrocesso no fortalecimento da sociedade civil e no processo de sua mundialização, bem como uma contração da esfera pública, sobretudo da emergente esfera pública não-estatal – a novidade mais importante desta passagem, que estamos vivendo, da transição da sociedade hierárquica para uma sociedade em rede” (6).

Mas é preciso ver que o fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo. Que a globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico. Que não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas (de vez que a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da – uma mudança global na – sociedade).

É preciso ver ainda que o novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

É preciso ver ainda por que a globalização é um fenômeno irreversível (conquanto ao que ela vai levar dependa da evolução do sistema diante da bifurcação com que se defronta na atualidade). Por que a globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes. Por que a globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem. E por que, como disse Giddens, “a saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização” (7). E, também, por que a globalização está em disputa e quais são as forças políticas que se confrontam ou se defrontam hoje no cenário internacional.

Por último, vamos interrogar por que não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’ (mas não exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90) (8).

NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.
(3) Idem.
(4) Thompson, William Irwing (2001). “Cultural History and Complex Dynamical Systems” in Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution. MA: Lindisfarne Books, 2001.
(5) Idem.
(6) Franco, Augusto (2001). “A ‘America’s new war’ e o recrudescimento do velho estatismo”: http://www.augustodefranco.org/conteudo.php?cont=textos&id=P24
(7) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasília: Correio Braziliense, 04/10/2001.
(8) Ver Capítulo 2.

GLOCALIZAÇÃO

Para começar, examinemos um (aparente) paradoxo: por que se observam como simultâneos dois movimentos aparentemente contraditórios: a) um de amplificação e, de certo modo, de desterritorialização, em escala global (supranacional) de importantes fatores que condicionam a vida das sociedades nacionais; e b) outro, de reflorescimento da perspectiva comunitária que reforça as identidades sócio-territoriais em escala local (infranacional) possibilitando, inclusive, que elas se projetem em escala global sobrepassando mediações nacionais?
Neste texto vou sustentar uma resposta para a pergunta acima. Tudo isso ocorre simultaneamente porque estamos vivendo, a partir dos anos 80 e 90, um processo de glocalização. A revolução do local, de um certo ponto de vista, nada mais é do que a globalização do local ou do que o resultado do que vamos chamar de processo simultâneo de ‘globalização-e-localização’. É preciso dizer agora o que estamos entendendo por ‘glocalização’. Já vimos no final do capítulo anterior que o que foi chamado de globalização é separável da visão mercadocêntrica que acompanhou a cunhagem desse novo termo. Vamos ver ainda que a glocalização é uma planetarização e uma comunitarização. E que o sentido do processo de glocalização, entendido nesses termos, é o da formação de uma nova sociedade cosmopolita global (planetária) como uma rede de comunidades (sócio-territoriais e virtuais – subnacionais e transnacionais) interdependentes. E, finalmente, que esse sentido pode jamais vir a se materializar, uma vez que a glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa entre o ‘local separado’ e o ‘local conectado’, entre ‘dependência x independência’, por um lado, e ‘interdependência’, por outro. Em seguida, vamos ver que o processo de glocalização impõe uma transformação do velho Estado-nação, ainda que não seja certo se tal transformação será necessariamente glocalizante, pois embora o Estado, ao que tudo indica, não tenda a desaparecer na atual transição histórica, o destino da sua forma atual está em disputa e essa disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização. Por último, vamos ver que assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na dimensão local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a glocalização confere um novo status ao local que, para ser revelado, exige também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido “forte”) da ‘localização’.

LOCALIZAÇÃO

Diante da mudança glocalizante que ora se processa no mundo, o local adquire um novo status, o qual, para ser revelado, exige também um novo construct: o conceito de ‘localização’. Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de ‘globalização’) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de ‘localização’) para entender as mudanças na dimensão local. As duas coisas, como vimos, constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal.

Neste texto vou tratar do tema da ‘localização’, tomando essa hipótese no seu sentido “forte” e não apenas como sinônimo de “nacionalização” (por exemplo, a tradução de softwares) ou “climatização” (por exemplo, a “tropicalização” de carros europeus e americanos para venda e uso no Brasil). Ou seja, não vamos tratar da ‘localização’ em seu sentido “fraco”, como adaptação de ofertas globais de produtos e serviços aos gostos, cultura, condições sócio-ambientais e necessidades locais.

Pois bem. Qual é o sentido “forte” da ‘localização’? Em primeiro lugar devemos ver que ‘localização’ não é apenas um novo termo, uma nova denominação para um antigo fenômeno ou um processo já bem conhecido. É um novo termo que designa um novo conceito, uma nova elaboração intelectual baseada em uma nova hipótese, como veremos a seguir.

1 | GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO

O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.

Embora o termo ‘globalismo’ já figure no dicionário Webster desde 1943 e embora a idéia de que vivemos em uma “aldeia global” tenha sido introduzida, para captar o impacto das novas tecnologias de comunicação em nossas vidas, por Marshall McLuhan, em 1962 (no livro “A Galáxia de Gutemberg”), a palavra ‘globalização’, com a sua conotação atual, foi utilizada pela primeira vez em 1983, por Theodore Levitt, em um artigo de dez páginas intitulado “A Globalização dos Mercados”, publicado pela Harvard Business Review (em 1o de maio de 1983). No entanto, Levitt não poderia ter, àquela época, a dimensão plena do fenômeno que hoje chamamos de globalização. Ele estava detectando um importante sinal: a convergência dos mercados do mundo. “Em todas as partes” – escreveu Levitt – “a mesma coisa é vendida e da mesma forma” (1).

Mas conquanto Levitt tivesse introduzido o termo ‘globalização’ em 1983, ele só foi popularizado em 1990, com a publicação do livro “O Mundo Sem Fronteiras: Poder e Estratégia na Economia Interligada”, de Kenichi Ohmae (2).

É significativo que tanto o introdutor do tema quanto o seu principal divulgador tenham encarado o fenômeno do ponto de vista da racionalidade mercantil. Também é significativo que ambos pareciam estar especialmente interessados em extrair, das novas tendências que lograram perceber, orientações para a gestão empresarial e para o marketing. O livro de Ohmae, por exemplo, tinha como subtítulo: “Lições de gerenciamento na nova lógica do mercado global”. Ohmae acreditava que a globalização constituía uma nova etapa no desenvolvimento das multinacionais. Ele imaginou que as multinacionais acabariam evoluindo para formas de gestão integrada em escala mundial e que isso as levaria a estabelecer, segundo seus próprios interesses, as novas regras do jogo global, tornando obsoleto inclusive o papel do Estado-nação. Com efeito, em 1995, Ohmae lançou outro livro (“O Fim do Estado-Nação”), que tinha como subtítulo: “Como o Capital, as Corporações, os Consumidores e a Comunicação estão reformatando os mercados globais” (3).

Fomos, assim, como já assinalei, apresentados ao tema (e/ou introduzidos na problemática) da globalização a partir de pontos de vista ou totalmente ou predominantemente mercadocêntricos.

Evidentemente, vários pesquisadores logo descobriram que o fenômeno era muito mais complexo do que simplesmente uma globalização dos mercados. Entretanto, a maior parte dos que escreveram sobre o tema na primeira e até, às vezes, na segunda metade da década de 90 ainda conferiam um peso bastante destacado ao fator econômico, talvez porque, juntamente com o processo de globalização em si, ocorria também, como fenômeno acompanhante, a emersão de uma ideologia (e de uma euforia) mercadocêntrica.


Globalismo, globalidade e globalização

Ulrich Beck, por exemplo, em 1998 (em “O que é globalização?”), fez uma distinção entre globalismo, globalidade e globalização. Globalismo seria a ideologia do domínio (mundial) do mercado (sobre as demais esferas da realidade social), ou seja, o neoliberalismo (correspondendo mais ou menos ao que eu chamo de perspectiva mercadocêntrica ou mercadocentrismo). Globalidade se referiria ao reconhecimento de que já vivemos em uma sociedade mundial, na qual há diversidade sem unidade – uma realidade irreversível, segundo ele, em virtude da conjunção de vários fatores ou motivos. Globalização, por sua vez, seria uma denominação genérica para os processos pelos quais os Estados nacionais sofrem a interferência cruzada de atores transnacionais em todos os campos (soberania, identidade, redes de comunicação, chances de poder e orientações políticas). A globalização seria, assim, uma “sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial”, uma nova forma global de capitalismo, desorganizado, na qual “não há poder hegemônico ou regime internacional econômico ou político”. Por isso, a globalização desencadeia um movimento contrário de defesa do Estado (social ou nacional) contra a invasão do mercado mundial (4).

Ora, se reconhecemos que existe uma realidade social objetiva (chamada de “globalidade”, como quer Beck, ou, simplesmente, de “sociedade cosmopolita global”, como prefere Giddens), então é óbvio que o fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica (globalista em termos econômicos ou neoliberal) que acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Levitt, Theodore (1983). “The Globalization of Markets” in Harvard Business Review (May 1, 1983).
(2) Ohmae, Kenich (1990). The Borderless World. New York: Harper & Row, 1990.
(3) Ohmae, Kenich (1995). O fim do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Campus, 1996 (orig. The End of the Nation State: How Region States Harness the Prosperity of the Global Economy. Free Press, McMillan, Inc., May 1995).
(4) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.

2 | GLOBALIZAÇÃO E CAPITALISMO

A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.

Na segunda metade da década de 90 começaram a aparecer também outros pontos de vista sobre a globalização, que pagavam menos tributos ao reducionismo da visão econômica. Pesquisadores como Anthony Giddens, David Held, Anthony McGrew e Manuel Castells, entre outros, começaram a ver que o fenômeno não se restringia ao aspecto exclusivamente econômico, como continuaram enfatizando alguns organismos financeiros (como o FMI e, até os dias de hoje, os seus críticos, de esquerda ou de direita – inclusive alguns de seus antigos funcionários, como Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, para o qual, em suma, quando alguém fala de globalização está se referindo a “remoção das barreiras ao livre comércio e a maior integração das economias nacionais”) (1).

No final do século passado, Anthony Giddens (1999) já havia considerado um erro ver a globalização como um “fenômeno quase exclusivamente em termos econômicos... A globalização – escreveu ele – é política, tecnológica e cultural, tanto quanto econômica” (2). Outros pesquisadores, por sua vez, começaram a perceber que o fenômeno da globalização tinha raízes mais antigas (uma parte das quais, talvez a mais significativa, lançada uns dez anos antes da “descoberta” de Levitt) e só começou a se revelar de fato, naquilo que tinha de mais inédito e surpreendente, uns dez anos depois da publicação do “A Globalização dos Mercados”.

Pois bem. Afirmei acima que para analisar corretamente o processo de globalização é preciso admitir, como ponto de partida, que uma nova sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião, ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do final dos anos 80.

A conjunção desses dois fatores, no dealbar dos anos 90, possibilitou uma mudança tão rápida no funcionamento da sociedade humana em nível global como jamais se viu na história. Creio ser essa mudança o fenômeno que interpretamos atualmente como globalização.


Inovação tecnológica e condições políticas favoráveis

Com efeito, as inovações tecnológicas que possibilitaram o atual processo de globalização surgiram na década de 1970, com a revolução das TICs (tecnologias de informação e comunicação). Por um lado, com o surgimento dos primeiros satélites de órbita estacionária, que viabilizaram a comunicação em tempo real entre dois pontos quaisquer do planeta (e, depois, da fibra ótica, da transmissão eletromagnética em uma faixa maior de freqüências, da utilização do laser, da telefonia digital etc.). E, por outro lado, com a invenção do microprocessador e do microcomputador. A união, sinérgica, dessas duas tecnologias, possibilitou que pessoas pudessem se conectar com pessoas superando as barreiras do tempo e do espaço. No entanto, tudo isso somente veio a ocorrer, em escala significativa, vinte anos depois, em meados da década de 1990, por meio de uma rede de redes de computadores capazes de se comunicar entre si chamada Internet.

Simultaneamente, as condições políticas que permitiram que o atual processo de globalização ocorresse só se reuniram a partir da queda do Muro. Nesse aspecto tinha razão Thomas Friedman quando disse, em 1999, que “o mundo vagaroso, estável e fragmentado da Guerra Fria, que dominara o cenário internacional desde 1945, foi substituído por um novo e bem lubrificado sistema interconectado, chamado globalização” (3). Para Friedman, “a globalização é o sistema internacional que substituiu o sistema da Guerra Fria”, no qual os Estados-nação detinham em suas mãos a quase totalidade da capacidade ordenadora (4).


Difusão mundial do capitalismo

Embora enfatize a importância das condições políticas, a visão de Thomas Friedman ainda é centrada predominantemente no mercado, sobretudo na combinação de livre mercado com inovação tecnológica. Para ele, “a idéia que dá impulso à globalização é o capitalismo de livre mercado – quanto maior a liberdade de atuação das forças de mercado e quanto mais ampla a abertura da economia para o livre comércio e para a competição, mais eficiente e mais próspera será a economia. A globalização significa a difusão do capitalismo de livre mercado para praticamente todos os países do mundo. A globalização também conta com o seu próprio conjunto de regras de economia – normas que giram em torno da abertura, da desregulamentação e da privatização da economia” (5).

Friedman, como se vê – e ele não esconde –, está possuído por aquela ideologia que Ulrich Beck chama de ‘globalismo’. Para se deixar possuir por tal ideologia é necessário, antes de qualquer interpretação do fenômeno da globalização como triunfo do liberalismo, aderir à crença de que o capitalismo de livre mercado constitui a alternativa mais eficaz de organização social.

Visões como essa, evidentemente, geraram e continuam gerando fortíssimas reações por parte daqueles que não têm motivos para aderir a tal crença (seja porque já abraçaram utopias igualitárias, seja porque já estão suficientemente impregnados por ideologias contrárias, baseadas no papel suficiente do Estado como protagonista único e exclusivo do processo de organização das sociedades); e também por parte daqueles que, como registrou o próprio Friedman, “foram violentados ou deixados para trás pelo novo sistema” (6).


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000. Anthony Giddens considerou um erro ver a globalização como um “fenômeno quase exclusivamente em termos econômicos... A globalização é política, tecnológica e cultural, tanto quanto econômica”. Para Giddens, as mudanças em curso no mundo atual “estão criando algo que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global. Somos a primeira geração a viver nessa sociedade, cujos contornos até agora só podemos perceber indistintamente. Ela está sacudindo nosso modo de vida atual, não importa o que sejamos. Não se trata – pelo menos no momento – de uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva. Ao contrário, ela está emergindo de uma maneira anárquica, fortuita, trazida por uma mistura de influências... A globalização não é um acidente em nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo como vivemos agora”. Assim, para Giddens, “é errado pensar que a globalização afeta unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivíduo. É também um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos íntimos e pessoais de nossas vidas... A globalização não somente puxa para cima, mas também empurra para baixo, criando novas pressões por autonomia local. O sociólogo americano Daniel Bell descreve isso muito bem quando diz que a nação se torna não só pequena demais para resolver os grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos”. Avançando mais nessa linha de raciocínio, Giddens percebe que “a globalização é a razão do ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo”.
(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. Mais adiante veremos que a queda do Muro é um evento cujas conotações simbólicas são muito mais profundas e abrangentes do que parecem à primeira vista. A queda do Muro de Berlim representa a queda de muitos outros muros, o fim de muitas separações, ou seja, da ausência de múltiplos caminhos... É, em certo sentido, uma dessacralização do mundo (sagrado = separado), ou seja, uma des-hierarquização (de vez que a hierarquia constitui-se sempre como uma ordem sacerdotal, quer dizer, sagrada), caracterizada pela existência de caminhos únicos. A possibilidade da conexão em rede – ou seja, da existência de múltiplos caminhos – foi, aqui, o fator-chave.
(4) Idem.
(5) Idem-idem.
(6) Ibidem.

3 | GLOBALIZAÇÃO E FUNDAMENTALISMOS LAICOS

Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas. Porque a globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da (uma mudança global na) sociedade.

A visão de Friedman, conquanto (como frisei anteriormente) tenha o mérito de reconhecer a dimensão política da globalização como processo de mudança ora em curso no mundo, é claramente mercadocêntrica. Ele não se pergunta se alguma coisa (e que tipo de coisa) mudou no desenho da sociedade civil e nos seus padrões de relacionamento com o Estado e com o mercado para permitir que a conjunção de inovação tecnológica com livre mercado, sob condições políticas favoráveis – com o fim do sistema de “muros” da guerra fria “que dividia todo o mundo” e a introdução da ‘www’ (World Wide Web) “que une todo o mundo” – pudesse assumir uma dimensão planetária, alterando o antigo equilíbrio do sistema global (1).

Partindo de pressupostos semelhantes aos de Friedman, muita gente tenta explicar a globalização a partir do mercado, imaginando talvez que alguma coisa como uma acumulação ou incubação de forças econômicas, represadas politicamente durante 40 anos e sem meios técnicos para se expressar, de repente, quando as condições (políticas e técnicas) foram favoráveis, tivesse irrompido à luz do dia. Nas explicações dessas pessoas, os comportamentos e as normas sociais são, por certo, alterados por tal fenômeno, mas o fenômeno em si mesmo não é explicado pela alteração da estrutura e da dinâmica social, por mudanças no “corpo” e no “metabolismo” das sociedades e nem por mudanças culturais-civilizacionais. É como se as forças de mercado tivessem um comportamento autônomo, uma dinâmica imanente, inerente apenas à sua própria “esfera” e não fossem construídas historicamente pela experiência concreta das sociedades humanas.

Por outro lado, os que se contrapõem a essa visão, em geral, também não fazem tais perguntas e não tentam investigar o que mudou na sociedade para produzir o fenômeno. Reagem à ideologia ‘globalista’ (neoliberal) com uma outra ideologia, simetricamente posta, contraliberal: o estatismo.


A cruzada estatista contra o neoliberalismo

No afã de resistir às mudanças, introduzidas em especial a partir dos anos 90, no padrão de relação Estado-sociedade, a luta contra a globalização assumiu assim, em grande parte, a feição ideológica de uma cruzada contra o chamado neoliberalismo.

O estatismo (ou estadocentrismo) imagina a sociedade como dominium do Estado. Imagina que o Estado não só detém mas deve deter eternamente o monopólio do público. Imagina, hobbesianamente, que o Estado deve ser o supremo regulador dos conflitos sociais. E imagina, em alguns casos, que o Estado deva ser o protagonista único e exclusivo das mudanças sociais.

Ora, para quem pensa dessa maneira não pode mesmo haver ameaça maior do que a globalização. Porque a globalização ameaça de fato o velho status do Estado-nação. Todavia, os que se deixaram impregnar pela ideologia estatista deveriam parar e perguntar: qual é mesmo o problema para a sociedade humana? O fato de estarmos entrando em contato com realidades que não podem mais ser adequadamente enfrentadas pelas tradicionais estruturas políticas nacionais e pelos sistemas de governança atuais não deveria significar que, necessariamente, está indo tudo por água a baixo. Deveria significar, isso sim, que temos pela frente a imensa tarefa de reconstruir novas estruturas e novos sistemas que dêem conta de enfrentar os novos desafios.


Globalidade irreversível

Beck lista oito motivos que tornam a globalidade irreversível:

“1) A ampliação geográfica e crescente interação do comércio internacional, a conexão global dos mercados financeiros e o crescimento do poder das companhias transnacionais.

2) A ininterrupta revolução dos meios tecnológicos de informação e comunicação.

3) A exigência, universalmente imposta, por direitos humanos – ou seja, o princípio (do discurso) democrático.

4) As correntes icônicas da indústria cultural global.

5) A política mundial pós-internacional e policêntrica – em poder e número... com uma quantidade cada vez maior de atores transnacionais (companhias, organizações não-governamentais, uniões nacionais).

6) A questão da pobreza mundial.

7) A destruição ambiental mundial.

8) Conflitos transculturais localizados.” (2)

A esta lista poderíamos acrescentar outros tantos itens que comparecem na nova realidade do mundo globalizado e que, de algum modo, estão associados aos desafios para os quais o velho sistema de Estados-nação não está preparado:

1’) A volta ao local, ou o reflorescimento da perspectiva comunitária como alternativa de desenvolvimento, revelando a inadequabilidade do Estado-nação para interagir com as peculiaridades dos processos locais. Como assinalou Daniel Bell: a nação se tornou, simultaneamente, pequena demais para resolver os grandes problemas e grande demais para resolver os pequenos. Como exemplos poderíamos citar, no primeiro caso, as questões ambientais e as questões relacionadas aos direitos humanos, que ultrapassam os fronteiras nacionais; e, no segundo caso, as questões, sobretudo políticas, relacionadas ao desenvolvimento local (que questionam as cadeias clientelistas de intermediação de recursos públicos que sustentam todo o sistema político).

2’) O terrorismo internacional, a lavagem de dinheiro e os paraísos fiscais, o narcotráfico e os tráficos de armas, de nascituros e crianças para adoção ilegal, de pessoas para prostituição ou trabalho forçado e de órgãos.

3’) A incapacidade do Estado-nação de reprimir as novas dimensões coletivas da criminalidade e o questionamento e a deslegitimação – na prática de milícias, gangues, grupos separatistas – do monopólio da violência por parte do Estado.

4’) A produção de armas de destruição em massa, sobretudo as nucleares, químicas e biológicas (mas também as de altíssima tecnologia, como as eletromagnéticas) nas mãos de países autocráticos e nas mãos de grandes potências com pretensões imperiais.

5’) As ameaças à paz mundial representadas pela velha noção de soberania (como vêm revelando atualmente as insanidades do grupo belicista que ascendeu ao poder nos USA com George W. Bush e as novas ideologias perversas urdidas e difundidas por esse grupo, como, por exemplo, a doutrina da preempção ou da guerra preventiva).

6’) As novas doenças endêmicas e pandêmicas, provavelmente causadas por uma intervenção antrópica desarmonizante no meio ambiente natural (como a malária amazônica resultante de desmatamento e as viroses da “zona quente” da África subsaariana).

7’) O colapso da política nacional baseada no sistema de representação, ou seja, o esgotamento e a perda de legitimidade das democracias realmente existentes (transformando os processos de eleição de governantes e legisladores, como diz Thompson, em uma espécie de “cruzamento do entretenimento, dos esportes televisionados e da gestão de celebridades na cultura popular da ilusão compartilhada...” (3).

8’) A exarcebação de fundamentalismos religiosos (em maior parte ligados a correntes sectárias do islamismo, mas não só) e laicos, como o fundamentalismo de mercado (com a ampla intoxicação pelo neoliberalismo dos policymakers e decisores de vários países do mundo, disseminando visões ideológicas, pretensamente científicas, segundo as quais o ser humano seria naturalmente ou intrinsecamente competitivo e desenhando políticas públicas que não levam em conta o papel da cooperação) e o fundamentalismo de Estado (com o amplo recrudescimento do estatismo, a partir, inclusive, de uma reação contra-liberal ao processo de globalização por parte de tendências políticas de direita e de esquerda, disseminando uma cultura adversarial e visões pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas, senão culpados, de vez que a sociedade humana é tomada como um campo inexoravelmente vincado pela relação amigo x inimigo, e fazendo política de oposição na base do “quanto pior para o país comandado pelo inimigo melhor para mim” ou, quando na situação, desenhando políticas públicas como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam em conta o papel da cooperação).

(A esta nova lista ainda poderiam ser acrescentados alguns outros itens, como o protecionismo dos países ricos e as demais assimetrias do mercado internacional, ou seja, como lembra Stiglitz, as injustiças do sistema comercial global e a hipocrisia das organizações econômicas internacionais quando fingem que estão “ajudando países em desenvolvimento ao forçá-los a abrir seus mercados para as mercadorias das nações industrializadas e desenvolvidas, ao mesmo tempo que essas nações protegem seus próprios mercados.”) (4)

Para enfrentar esses novos desafios de maneira responsável, é necessário abandonar tanto a visão eufórica do globalismo econômico, que imagina que o livre jogo das forças de mercado levará, por si só, ao melhor dos mundos, quanto a visão reativa, estadocêntrica, que imagina que o fim da capacidade de impor, vertical e heteronomamente, uma ordem previamente concebida ao caos social signifique alguma coisa como a volta à barbárie. Para fazer isso é preciso partir de uma visão proativa, que aceita o desafio da mudança da realidade, tal como ela se afigura (com os seus aspectos negativos e positivos, ainda que, no momento, mais negativos do que positivos), e procura fluir junto com ela para captar o seu sentido, conhecer as suas tendências e interagir positivamente com as novas configurações de atores que ela enseja.


A nova sociedade civil

Para falar de novos atores, se o processo chamado de globalização não modificasse o comportamento dos Estados nacionais, não poderia estar emergindo, não pelo menos com a intensidade e a velocidade que verificamos na década de 1990, uma nova sociedade civil (o chamado terceiro setor). Igualmente, o reflorescimento da perspectiva comunitária – um dos sinais mais promissores dos tempos atuais – não poderia estar ocorrendo se o velho Estado-nação permanecesse tal como era antes. Foi preciso abalá-lo, desconstruir a ideologia que justificava a sua auto-suficiência, de certo modo vergar a sua espinha dorsal – sua pretensão de onipotência e sua ambição de onipresença na sociedade – para que houvesse um pouco mais de ar para respirar... e as pessoas, então, respirando por seu próprio esforço (fora dos “balões de oxigênio da grande incubadeira-Estado”), pudessem se agrupar para pensar e agir por si mesmas.

É assim que está emergindo, em toda parte em que as condições políticas o permitem, uma nova sociedade civil. Pessoas se associando a outras pessoas para fazer coisas que, voluntariamente, estão a fim de fazer – e, cada vez mais, de maneira independente de raça e credo, de língua e costumes, de território e nação –, não, predominantemente, para ganhar alguma coisa, levar alguma vantagem, destruir algum concorrente ou eliminar algum inimigo. Isso significa que estamos avançando, na prática, para a perspectiva inédita de um mundo onde seja desejável e possível a cooperação, um ‘mundo (pelo menos em parte e sob certas condições) de colaboradores’, ao invés do ‘mundo (apenas) de competidores’ (dos neoliberais) ou do ‘mundo vincado pela relação amigo x inimigo’ (dos estatistas).

Com efeito, a cooperação é (para usar uma expressão marxiana) mais ‘conforme ao ser social’ da nova sociedade civil (ou do terceiro setor) do que ao ser social do mercado ou ao ser social do Estado. Por isso, a emergência do terceiro setor (crescentemente acompanhada do reconhecimento do seu papel estratégico para o desenvolvimento social) é um fenômeno muito significativo dentro do processo de globalização.

Como qualquer pessoa inteligente pode facilmente perceber, isso nada tem a ver com perspectivas privatizantes ou com a derruição do Estado pregada pelo pensamento neoliberal ou a ele atribuída. Tem a ver com uma nova perspectiva sociocêntrica, publicizante mas não estatizante, que está podendo surgir no contexto atual do processo de globalização, mesmo que os efeitos desse processo tenham se mostrado, até o momento, em grande parte, perversos.

Portanto, para compreender adequadamente o que é a globalização temos que centrar o foco na sociedade e não apenas no mercado ou somente no Estado, desvencilhando-nos dessas duas “drogas pesadas” que turvam o pensamento, ou seja, das ideologias mercadocêntricas e estadocêntricas: o neoliberalismo e o estatismo, respectivamente.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(2) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(3) “À medida que a política do governo representativo é transformada em esporte e entretenimento pela mídia eletrônica, em um ambiente em que as pessoas ficam livres para votar na celebridade mais bem-sucedida na captação de recursos e na propaganda, a civilização tradicional volta a assumir formas distorcidas de estágios anteriores – subculturas acadêmicas de filosofias pós-modernas não populares e obscurantistas em universidades, cultos a gurus de autoridade carismática em religiões medievais e gangues de adolescentes de dominação primata.” Cf. Thompson, William Irwin. “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution” (MA: Lindisfarne Books, 2001).
(4) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.

4 | GLOBALIZAÇÃO E MUDANÇA SOCIAL

O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

A partir de meados da década de 1990, alguns pesquisadores compreenderam também que as inovações tecnológicas que possibilitaram a ocorrência do processo atualmente chamado de globalização não determinaram, stricto sensu, este processo, senão que permitiram que ele acontecesse com as características que de fato apresenta no final do século 20 e início do século 21 e que o distinguem de outras possíveis ou imaginadas “globalizações” pelas quais teria passado o mundo em épocas pretéritas.

Por certo a globalização atual, dominada pelo fato da interligação crescente das economias nacionais sob a influência devastadora de um mercado financeiro livre de qualquer regulação normativa, acarreta muitas injustiças comerciais e sociais. O fenômeno global que chamamos de globalização, no entanto, é muito maior do que isso. Não se trata, como ainda imagina boa parte da velha esquerda, de um plano urdido pelas corporações transnacionais, que estão na vanguarda do processo de internacionalização da economia mundial, para dominar o mundo. Trata-se do surgimento de novas condições, sem as quais seria impossível o fluxo interativo de informação e conhecimento que tem permitido, inclusive, que os poderosos complexos financeiros e comerciais possam se internacionalizar e se integrar e tentar dominar o mundo. Mas que permite, também, a percepção compartilhada de problemas e perspectivas globais e o surgimento de novos atores globais, como a nova sociedade civil mundial que está emergindo na atualidade.


Inovação tecnológica e mudança social

Muitas vezes interpretamos essas condições como recursos técnicos: o surgimento das redes telemáticas que possibilitam a interação em tempo real, dando uma qualidade inédita ao processo de globalização do final do século 20, que o diferencia qualitativamente das antigas globalizações possivelmente já ocorridas em outras épocas, como na era das navegações, por exemplo. No entanto, é preciso ver – e isso faz toda a diferença em termos de análise – que tais condições são sociais. O fundamental aqui, como veremos mais adiante, não é o fato de as redes telemáticas serem telemáticas (inovação tecnológica resultante da sinergização entre tecnologias de comunicação em tempo real com tecnologias miniaturizadas de informação em tempo real, amplamente disponibilizadas) e sim o fato de serem redes (inovação social no padrão de organização).

Os avanços técnicos que estão possibilitando a existência de um mundo em tempo real – ou seja, de um mundo sem distância – cumprem um importante papel, de fato, mas a direção do seu desenvolvimento responde ao surgimento de novas relações sociais e não o inverso. Quando se inventa um novo hardware ou um novo software que permitem que tal ou qual operação seja feita entre grupos humanos é porque essa operação atende ou corresponde a um padrão de comportamento dado pela configuração e pela dinâmica desses grupos – uma necessidade, um desejo coletivo, enfim, uma possibilidade de vida ou convivência social admissível ou apropriável por eles.

Em outras palavras, são as relações sociais que determinam, em grandes linhas, os contornos e as características do campo dentro do qual surge a inovação tecnológica. Isso vale tanto para a tecnologia hidráulica dos egípcios, há 4 mil anos, quanto para a tecnologia atual das redes de computadores. Com efeito, como lembra Thompson (no excelente artigo “História cultural e sistemas dinâmicos complexos”, 2001), cada uma das bifurcações ou transformações culturais... [pelas quais passou a humanidade], desde as ferramentas da Idade da Pedra até os computadores, não constitui simplesmente uma mudança tecnológica. A própria inovação tecnológica é algo profundamente embutido em diversos sistemas de valores e símbolos, de modo que uma nova ferramenta pode surgir em sincronia com uma nova forma de sistema de governo e também como uma nova forma de espiritualidade. Em contraste com a história mais linear da tecnologia, a história cultural preocupa-se com o complexo sistema dinâmico no qual a flutuação biológica natural, as restrições ecológicas e os sistemas de comunicação e organização social interagem em um processo de “co-originação dependente” (1).

Mais ou menos nessa mesma linha, conquanto referindo-se especificamente à Internet, Manuel Castells assinalou, no início de 2002, que “as tecnologias são produzidas por seu processo histórico de constituição e não simplesmente pelos seus desenhos originais enquanto tecnologia... A Internet é um instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e sim que é o comportamento o que muda a Internet” (2).

Ora, a esta altura da discussão, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: qual é a mudança social (em sentido amplo, ou seja, no sentido “micro”, relativo à estrutura e à dinâmica das sociedades e no sentido “macro”, cultural-civilizacional) acompanhante – vamos dizer assim – das novas condições políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização? Esse é o ponto.

Acho que é possível mostrar que, no sentido “micro”, a mudança social acompanhante das novas condições políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado a manifestação do fenômeno que interpretamos como globalização é uma mudança democratizante e aponta, dessarte, na direção de novas redes pactuadas de conversações, de um novo “metabolismo” (um novo modo de regular conflitos no interior do sistema formado por agentes que interagem em termos de cooperação e competição) e de um novo “corpo” compatível com esse novo “metabolismo” (ou seja, um novo padrão de organização, caracterizado pela existência de caminhos múltiplos entre os agentes, de conexões “horizontais” – isto é, de redes). Nesses termos, o sentido da grande mudança é o da emergência de cada vez mais redes e a emergência das redes, portanto, constitui a chave para entender a mudança social que está na base do fenômeno que chamamos de globalização.

Penso ser possível mostrar também que, no sentido “macro”, a mudança social acompanhante do surgimento do novo ambiente político mundial que se esboça a partir da queda do Muro e que, juntamente com a inovação tecnológica, tem possibilitado a manifestação do fenômeno que interpretamos como globalização é o surgimento de uma nova cultura planetária, uma cultura conforme àquilo que Giddens chamou de “sociedade cosmopolita global”, uma cultura que só foi possível emergir na nova ambiência política pós-guerra-fria e que – aqui está toda a dificuldade para a análise – acompanha sim os movimentos da nova economia globalizada, porém pode apontar para outra direção, diferente daquela captável pela visão mercadocêntrica ou proposta pelo ‘globalismo’ como ideologia neoliberal.

Assim, há quem anteveja que o processo de emersão dessa nova cultura tenha outro sentido. Thompson, por exemplo, acredita que “estamos testemunhando o surgimento de complexos sistemas noéticos de governança nos quais os seres humanos estão se agrupando em redes eletrônicas globais de consciência. Máquinas que antes eram externas a nós estão se tornando arquiteturas íntimas do nosso envolvimento com outras mentes, outras culturas, outros corpos celestiais” (3).

Com efeito, as coisas estão tão imbricadas – novo ambiente político mundial, inovação tecnológica, nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local – que torna-se muito difícil para a análise linear da velha sociologia (que procura relacionar causa e efeito por meio de relações unívocas ou biunívocas e confunde causação com anterioridade temporal) captar o fenômeno em sua globalidade. Mas a globalização, como, aliás, diz o termo, é um fenômeno que só se deixa captar por uma visão da sua globalidade enquanto sistema complexo interagente que co-evolui com seus componentes, relacionados entre si por processos de co-originação com múltiplos laços de interdependência.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.
(2) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”. http://campus.uoc.es/web
(3) Thompson; op. cit.

5 | GLOBALIZAÇÃO IRREVERSÍVEL

A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo, depende da evolução do sistema diante da bifurcação com que se defronta na atualidade.

Entendido como um processo de desconstituição do antigo sistema mundial baseado no Estado-nação, parece óbvio que a globalização é um processo irreversível. Temos hoje outros atores internacionais, além do Estado-nação. Do ponto de vista econômico, como assinala Friedman, “os países... ainda são de enorme importância, hoje em dia; mas também o são os supermercados e os indivíduos com superpoderes. É impossível compreender o sistema da globalização ou a primeira página dos jornais sem a visão da interação complexa entre esses três agentes: os Estados em choque com os Estados, os Estados em choque com o supermercados, e os supermercados e Estados em choque com os indivíduos com superpoderes” (1).

Eliminar esses outros sujeitos que atuam na cena internacional, devolvendo ao Estado-nação um papel semelhante ao que cumpria antes da queda do Muro, para tomarmos um referencial político, não parece ser uma tarefa possível. Para o mal ou para o bem (melhor seria dizer: para o mal e para o bem), o processo de globalização interligou as unidades sócio-territoriais do planeta, os diversos mundos que antes podiam viver mais ou menos isolados, de tal forma e com tal intensidade que voltar a estados anteriores de separação, implicaria realizar uma tarefa impossível: seria necessário não apenas cortar as conexões, proibir os meios de comunicação globais e os meios de transporte de pessoas e objetos, senão, também, apagar a memória das duas últimas décadas. Isso para não falar na desarrumação que tal tentativa de re-compartimentação nas unidades nacionais acarretaria na economia global, no desenvolvimento científico e tecnológico, na política internacional e, inclusive, na estabilidade sócio-política mundial. Assim, parece razoável afirmar que a globalização é um processo irreversível. No entanto, tal não significa que ela nos levará para um lugar determinado, ou melhor, determinável a priori.

É bom frisar: conquanto o processo de globalização seja irreversível e conquanto o seu sentido geral seja o da conformação de uma nova configuração planetária, não é certo a que lugar ele levará. O mundo se encontra diante de uma bifurcação e tanto pode avançar, como supõe Thompson, “na transição da era de uma economia industrial global de Estados-nação territoriais para uma ecologia cultural planetária de sistemas de governança noéticos” (2), quanto pode retroceder para formas autoritárias, com um recrudescimento do estatismo que tenderá a reinstaurar a velha ordem do “estado de guerra” em âmbito planetário, baseada em novos complexos-pólos pós-industriais militares de alta tecnologia.


Bifurcação

Mas o conceito de ‘bi-furcação’ não deve ser entendido literalmente como a existência de apenas duas alternativas, do tipo ‘civilização ou barbárie’ ou ‘ordem ou caos’. Bifurcação é o ponto crítico em que o sistema pode “optar” entre mais de um futuro possível. Atingido esse ponto crítico, a descrição determinista entra em colapso, tornando-se impossível prever o estado futuro do sistema. Tudo indica que o mundo atingiu ou está atingindo esse ponto crítico na passagem do século 20 para o século 21.

Existem vários futuros possíveis para além do bom cenário das ‘redes eletrônicas de consciência’ e do mau cenário ‘Blade Runner’, ainda que – por algum motivo que não deveria ser tão desprezado pelos analistas – mais de 90% das tentativas de antecipação da literatura de ficção científica apontem para cenários do tipo Blade Runner.

Todavia, a mudança macrocultural em curso, a mudança, como assinala Thompson, “da nossa matriz de identidade de uma cultura de desejo de compra econômica e fervor patriótico para uma nova cultura planetária, na qual a ciência e a espiritualidade [um novo tipo de espiritualidade pós-religiosa] são os pais diplóides de uma nova matriz de consciência” (3) está gerando uma reação que introduz a bipolaridade. Isso dá a impressão de que só existem duas alternativas.

Essa reação é o fato mais preocupante nos dias de hoje, porquanto não se trata propriamente apenas de uma reação à globalização (ou às suas más conseqüências, o que seria justificável) e sim, também, de uma reação às melhores promessas da globalidade. Os fundamentalismos religiosos (mas também os laicos, como o neoliberalismo e o estatismo) e as reações terroristas nacionalistas ao que Thompson chama de ‘planetização’ (e que outros, como Edgar Morin, por exemplo, chamam de ‘planetarização’) constituem ameaças gravíssimas. “Como a Inquisição e a Contra-Reforma” – escreve ele – “essas explosões reacionárias podem prejudicar muito e atrasar a transformação cultural por séculos a fio. Se a humanidade pode ou não ascender para uma identidade transcultural, na qual a ciência e um novo tipo de espiritualidade pós-religiosa possam reintroduzir a consciência plenamente individuada da pessoa em um cosmos multidimensional, é a questão dos nossos tempos” (4).

O que vai acontecer, não se pode saber de antemão. O jogo está sendo jogado.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(2) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.
(3)-(4) Idem.

6 | GLOBALIZAÇÃO INÉDITA

A globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes.

Há quem afirme que o mundo já passou por várias globalizações. Citam-se, freqüentemente, a globalização ocorrida na época dos descobrimentos ou, ainda, a globalização dos primeiros anos do século 20. Os que dizem isso estão, obviamente, pensando a partir da economia, estão pensando em termos de ampliação e de integração de mercados.

Ora, mesmo desse ponto de vista, a globalização atual é um fenômeno único. Antes de qualquer coisa porque, antes, jamais havia se conformado a constelação particular de fatores políticos e tecnológicos que possibilitou a globalização atual. Por exemplo, não se poderia sequer pensar em um mercado financeiro que funcionasse em todos os lugares do planeta simultaneamente, quer dizer, em tempo real. Primeiro porque as condições políticas do mundo anterior não o permitiriam. Segundo porque a tecnologia disponível não o permitiria.

Mas a razão fundamental e mais substantiva é, simplesmente, porque, antes, não estava acontecendo a mudança social, em sentido amplo, atualmente em curso. Ou seja, não estava ocorrendo, no nível “macro”, a transição para uma cultura global e, no nível “micro”, a emergência de padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-participativos – fatores sem os quais, é bom frisar, a inovação tecnológica atual certamente não teria tomado a direção que tomou. Basta apontar um exemplo: não teríamos a Internet, não, pelo menos, com a estrutura e o funcionamento libertários que a caracterizam, porque as pessoas que desenharam essa rede de redes de computadores teriam feito, historicamente, outras escolhas, condicionadas por outra imagem de ordem, por outros padrões de organização e por outros princípios de regulação, avessos às possibilidades de imprevisibilidade e de holarquia. Essas pessoas não poderiam suportar conviver com a idéia do caos e dificilmente iriam produzir algo que ninguém pudesse, a rigor, controlar, a partir de um modelo preexistente de ordem, de cima ou de fora. Não porque não pudessem reunir disposição emocional (ou a vontade) ou capacidade intelectual (ou os conhecimentos necessários) para fazer isso e sim porque não teriam nenhuma experiência de mudança nessa direção capaz de mobilizá-las e inspirá-las, nenhum precedente concreto que conformasse um novo “lugar” a partir do qual tais escolhas fizessem sentido.

A globalização atual, portanto, é única. A descompartimentação que ela promove está ensejando o surgimento de uma coisa que jamais existiu antes no mundo: um novo tipo de sociedade, uma sociedade cosmopolita global, organizada em rede e capaz de possibilitar a interação entre seus nodos em tempo real.

7 | GLOBALIZAÇÃO, ORDEM E DESORDEM

A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha ordem.

A globalização não é ainda a transição para uma nova ordem mundial (embora possa levar a essa transição), mas uma desconstituição do mundo assentado na velha ordem do Estado-nação. Como diz Beck, é “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial” (1). E, como assinala Giddens, “não se trata de uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva” (2).

Para alguns, isso é um verdadeiro horror. Grande parte das reações fundamentalistas à globalização (e, na verdade, à globalidade), sobretudo as laicas, apóiam-se na idéia de ordem. São reações de fundo hobbesiano. Elas partem da idéia de que se não houver uma ordem pré-existente, previamente concebida e adotada por um sujeito particular que, falando em nome de um bem comum universal, que lhe dê o direito e a capacidade de impô-la, vertical e heteronomamente, às sociedades, será a volta à barbárie ou o caos. Como tal sujeito (único e exclusivo) é o Estado, trata-se de uma visão estadocêntrica que, não raro, reúne agentes de direita e de esquerda no mesmo pólo reativo.

As sociedades humanas são tomadas, por tal visão, como sociedades em estado de natureza (e uma natureza que se comporta darwinisticamente). Não existe sociedade civil a não ser como dominium do Estado. Deixadas a si mesmas, as sociedades se fragmentarão em virtude da ausência de uma instância superior reguladora dos conflitos gerados pela inexorável competição entre os humanos. Os conflitos não são regulados por processos políticos (ex parte populis), por modos de regulação societários e sim por sujeitos pretensamente situados acima da sociedade. O fim (isto é, o sentido) da política (ex parte principis) é a ordem (Hobbes) e não a liberdade (Spinoza). A competição é inerente à natureza humana, enquanto a cooperação é o resultado de um aprendizado (e de uma racionalização, visando obter vantagens a longo prazo). Em suma, a sociedade humana é incapaz de gerar ordem espontaneamente a partir da cooperação.

Ora, se a ordem não pode ser gerada espontaneamente, ela tem que ser imposta por alguém. O mal maior, então, não é a ordem injusta e sim a não-ordem. O caos é o demônio, a deusa-dragão Tiamat (a deusa do caos) que deve ser cortada por Marduk (o deus da ordem) com a espada que separa, que reintroduz continuamente todo tipo de compartimentação. Com efeito, grande parte das críticas estatistas, de direita ou de esquerda, à globalização são pautadas pelo tema do confronto com a desordem internacional gerada por tal processo. São reações à desordem, como se a ordem anterior e compartimentada do velho “sistema de muros” do Estado-nação fosse alguma maravilha ou algo que merecesse ser preservado. Mesmo os relatórios elaborados por segmentos da sociedade civil mundial (como os do Social Watch) adotam essa perspectiva, o que nos dá uma medida de quão profundamente estão fundeadas no subsolo dos preconceitos as visões ideológicas de boa parte dos que se opõem à globalização por medo de uma globalidade não-controlável, ou seja, por horror ao caos.

É bom repetir: a globalização não é um processo de constituição de uma nova ordem mundial. Talvez seja até mais por isso, e não porque tal processo estivesse construindo uma nova ordem injusta, que ela – ao ameaçar a velha ordem (o sistema de equilíbrio de poder internacional protagonizado pelo Estado-nação) sem colocar nada no lugar – aterrorize tanto os cavaleiros da ordem do Estado.

Todavia, a desarrumação do mundo que está sendo promovida pela globalização (com conseqüências adversas, por certo, para a qualidade de vida da maior parte da população mundial, pelo menos nesse primeiro momento) é, provavelmente, a única chance (ou uma chance) de desconstituir uma ordem injusta que impede a planetização, obstrui a vigência da democracia no plano internacional e possibilita a reprodução de enclaves autocráticos constituídos por Estados nacionais separados e escudados por velhas noções de soberania (3).

A opinião pública mundial não tem mais aceitado que, em nome da soberania, um Estado particular prenda, torture ou elimine suas minorias políticas, discrimine seus habitantes por razões religiosas, raciais ou de gênero, ou provoque catástrofes ambientais. Isso significa que uma nova cultura planetária está surgindo, impulsionada pelos novos movimentos sociais globais emergentes, em defesa da democracia e dos direitos humanos, das minorias sociais e do meio ambiente. A emersão desses novos movimentos sociais – democráticos, pacifistas, ecumênicos, feministas, ecológicos e comunitaristas – ampliou a participação popular, levando-a de uma perspectiva predominantemente econômica e corporativa, setorial e compartimentada sócio-territorialmente, para uma perspectiva mais universal e global.


Os riscos da ordem imposta

O risco, visível hoje claramente, é que, em nome da defesa desses valores, um Estado particular se invista unilateralmente no direito de regular o mundo todo e de normatizar, a partir do seu próprio poder militar e da sua capacidade econômica, a vida dos outros povos do planeta. Por isso, é melhor que a globalização seja mesmo “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial” e que tal processo não esteja instaurando “uma ordem global conduzida por uma vontade humana coletiva” particular, até enquanto não se reúnam as condições para a consolidação de uma nova instância (ou de uma nova dinâmica, talvez seja melhor dizer assim) democrática internacional.

Um governo mundial democrático, nos moldes atuais (com um parlamento e uma instância executiva mundiais ou algo equivalente), pode não ser, contudo, a melhor alternativa. Pois, ao que tudo indica, não se trata de transplantar a realidade política vigente no interior dos atuais Estados-nação considerados democráticos para o plano internacional. A democracia realmente existente no interior das repúblicas e dos governos representativos modernos não tem acompanhado as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de globalização. Com efeito, tais inovações têm surgido, simultaneamente, na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). O corpo e o metabolismo do Estado-nação ainda permanecem, todavia, como uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Basta ver como estão organizados os sistemas políticos e eleitoral, as burocracias, os mecanismos verticais (em geral clientelistas) de oferta das chamadas políticas públicas e os padrões de relação entre Estado e sociedade ainda vigentes na maior parte, senão na totalidade, dos Estados-nação do globo.

Isso significa que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação atual, embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.


Sonhando com alternativas

Ora, novos sistemas globais de governança, para serem realmente novos, deverão ser frutos de novos arranjos de atores, de uma nova arquitetura de rede e de novos modos democráticos (de democracia em tempo real, de ciberdemocracy), conectando identidades individuais e coletivas – sócio-territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos sociais, organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas (novos arranjos produtivos e iniciativas de uma nova sócio-economia solidária) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião nacionais, subnacionais e transnacionais) – para além da identidade única do Estado-nação.

Estamos fazendo aqui, evidentemente, um exercício de antevisão daquilo que, na falta de uma palavra melhor, Thompson chamou de “ecumene planetária” como sistema de governança resultante da transformação cultural que está acontecendo atualmente no mundo, na transição de uma economia globalizada, ainda baseada em Estados-nação industriais, para uma nova ecologia cultural global, caracterizada por uma era pós-industrial, por uma matriz de identidade noética (científica e espiritual pós-religiosa, não mais baseada em língua e religião e em classe e nação), por uma mentalidade dinâmica complexa (pós-galileana) e por uma modalidade de governança participativa (pós-representativa) (4). Exercícios análogos têm sido feitos por vários arautos da sociedade da informação e do conhecimento ou da “nova era”, conquanto tais exercícios, em boa parte, ainda estejam, no primeiro caso, muito presos a visões unilaterais das conseqüências introduzidas pelas transformações econômicas e pelas inovações tecnológicas em curso no mundo hodierno e, no segundo caso, a visões míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas (como se a nova era devesse ser um novo reino de velhos magos) e não consigam, ambas, captar muito bem as mudanças sociais, em sentido amplo, implicadas em tudo isso.

O fato é que o processo de globalização não conduz para nova ordem alguma previsível, conquanto sua ocorrência, desconstituindo a velha ordem, destranca o futuro, permitindo que a interação global dos atores sociais construa, de fato, novas alternativas civilizatórias. Ainda que o sentido da “nova ordem” jamais seja dado pelo desejo de um ator individual, não é proibido sonhar com tais alternativas (como ensaiei, seguindo Thompson, no exercício acima).

E é melhor assim.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000
(3) Mollison e Slay observam que “não deveríamos confundir ordem com arrumação. Arrumação separa... enquanto que a ordem integra.... Criatividade raramente é arrumada. Poderíamos dizer, provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade compulsiva substitui a criatividade imaginativa...” Cf. Mollison, Bill e Slay, Reny Mia. Introdução à Permacultura. Brasília: Ministério da Agricultura e do Abastecimento / Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável, 1998.
(4) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.

8 | GLOBALIZAÇÃO INSUFICIENTE

A saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização.

Não é possível (e nem desejável) barrar a globalização “fugindo para trás” ou tentando se refugiar em um mundo de localidades isoladas. No terceiro capítulo deste livro, veremos que, para o processo de democratização, o problema não é o excesso e sim a falta de globalização.

Referindo-se aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, Anthony Giddens escreveu que “a saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos globalização. A interdependência global veio para ficar e é mais benéfica para o mundo do que uma retomada da polarização dependência x independência que pretenda atrasar o relógio em várias décadas” (1).

Contra aqueles que, tolamente, culpam a globalização pelo ocorrido, clamando por mais governo, Giddens argumenta: “Precisamos de mais globalização para emergir da fase difícil em que estamos mergulhados. Entre outras coisas, globalização diz respeito a progressos nas leis internacionais... Os movimentos antiglobalização advogam que o hiato entre pobres e ricos está aumentando. Culpam a globalização por isso. Porém, a primeira idéia é questionável e, a segunda, falsa. Não existe uma tendência única para as desigualdades no mundo. Alguns países asiáticos, incluindo a China, têm, hoje, um Produto Interno Bruto (PIB) – em comparação com países ocidentais – muito superior ao registrado há 30 anos. O resultado se deve ao fato de que, durante esse período, tais países obtiveram uma média de crescimento consideravelmente alta. Esse sucesso foi atingido por meio de entrosamentos com a economia mundial, não pela rejeição dela. Países que consideraram isolar-se das influências da globalização, como Coréia do Norte, Mianmá ou Irã (e, claro, Afeganistão), estão entre as mais pobres e autoritárias nações do mundo” (2).

A globalização é adversa por estar ainda inconclusa, incompleta, inacabada. O mundo ficou como ficou (injusto socialmente, desigual economicamente, opressivo politicamente e dominado ideologicamente) muito mais em virtude do unilateralismo (estatista) dos impérios do que por todas as (pouquíssimas) tentativas e ensaios de globalização que já ocorreram. E, do ponto de vista da democracia, o mundo está, neste preciso momento, muito mais ameaçado pelo unilateralismo do novo projeto de império americano do que por todos os efeitos perversos do liberalismo de mercado.

A globalização atual, entretanto, não é uma urdidura dos neoliberais que, por certo, tentam conduzi-la em uma determinada direção. No entanto, não obstante os seus desejos e os seus esforços, nenhum desfecho está assegurado, pois a globalização está em disputa.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Giddens, Anthony (2001). “O fim da globalização?”. Brasília: Correio Braziliense, 04/10/2001.
(2) Idem.

9 | GLOBALIZAÇÃO EM DISPUTA

A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os neoliberais (favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma diversidade de posições variantes e conforma novos campos políticos de convergência que superam tal contradição.

A globalização está em disputa. Várias posições se defrontam ou se confrontam hoje na cena internacional e não apenas as posições favoráveis dos neoliberais e as posições contrárias dos estatistas. Uma tentativa razoavelmente consistente e sofisticada de análise e sistematização da configuração das forças que interagem hoje em torno do tema (e do fenômeno) da globalização foi elaborada no ano passado por David Held e Anthony McGrew (2002), no livro “Globalization/Anti-Globalization”, em especial no Capítulo 8, intitulado “A nova política da globalização: mapeando ideais e teorias”.

Em suma, Held e McGrew, avançando um pouco em relação às suas próprias análises anteriores e também em relação ao que escreveram sobre o assunto Anthony Giddens e outros pesquisadores da London School of Economics, estabelecem um quadro de referência para situar e caracterizar as diversas posições existentes no cenário internacional.

Assim, em relação a cinco características principais (quais são os princípios éticos norteadores; quem deve governar; quais são as reformas essenciais; qual é a forma desejada de globalização; e qual é a modalidade de transformação política preconizada), Held e McGrew identificam seis posições distintas: os neoliberais, os internacionalistas liberais, os reformadores institucionais, os transformadores globais, os estatistas/protecionistas e os radicais.

Isso, convenhamos, é muito mais inteligente do que apenas contrapor, de um lado, os neoliberais e, de outro, os que querem evitar o desastre neoliberal, como fizeram, ad nauseam, durante toda a década de 1990, muitos ativistas políticos em debates de salão, seminários acadêmicos, manifestações corporativas, discussões partidárias e campanhas eleitorais, no Brasil e alhures.

Assim, em resumo, a tabela Held-McGrew (2002) – que procura estabelecer a comparação entre os modelos de política – seria a composição das seis tabelas seguintes [= as tabelas referidas estão ausentes da presente edição digital].


Os neoliberais A crença dos neoliberais, expressada desde o início dos anos 60 até a década passada por Hayek e outros, é a de que a liberdade e a iniciativa dos indivíduos – realizadas pelo livre mercado – devem ter a primazia em relação à vida econômica e política nacionais e, inclusive, sobre a ordem internacional. Ocorre que os neoliberais foram os primeiros a perceber o fenômeno da globalização, o que os levou a cavar um sulco mercadocêntrico de interpretação por onde escorreram as demais interpretações dos que se posicionaram ou a favor ou contra o fenômeno. Muitos teóricos e militantes políticos que ficaram contra a globalização só o fizeram porque não conseguiram distinguir entre a interpretação (subjetiva) que se consagrou e o fenômeno (objetivo) que permaneceu praticamente desconhecido durante vários anos (1).


Os internacionalistas liberais Os internacionalistas liberais são os defensores dos modelos de governança estruturados em torno da idéia de cooperação internacional e da democratização “realista” das relações entre os Estados-nação. Quase a totalidade dos governos ocidentais e dos governos de repúblicas e governos representativos modernos, são (ou se declaram como, ou adotam posturas políticas que permitiriam seu enquadramento como) internacionalistas liberais. Também participam dessa posição a maioria dos funcionários de organismos internacionais e agências multilaterais (Organizações do Sistema ONU, OMC, BIRD, BID etc.). Evidentemente, os internacionalistas liberais tomam a competição entre os Estados nacionais como um dado da realidade a ser mitigado por formas adequadas de mediação racional (2).


Os reformadores institucionais Os reformadores institucionais são mais avançados do que os internacionalistas liberais. Propõem uma reforma do sistema de governança internacional ainda estruturado sobre a idéia original da Liga das Nações e das Nações Unidas. Reconhecem as limitações do sistema ONU e admitem a necessidade de participação de outros atores para além dos Estados nacionais. Uma parte dos governos democráticos, bem como um contingente crescente de funcionários de instituições de fomento ao desenvolvimento do sistema ONU e de agências de cooperação internacional, poderiam ser enquadrados nessa posição (3).


Os transformadores globais Os transformadores globais pareceriam ser os mesmos reformadores institucionais quando fora dos governos e das instituições internacionais e agências multilaterais sustentadas por governos, se não fosse por duas diferenças muito importantes: eles se posicionam mais contundentemente contra os rumos que vem tomando o processo de globalização e eles não admitem que as formas de governança – subnacionais ou supranacionais – centradas no Estado-nação sejam as únicas possíveis. Por isso estão engajados freqüentemente em campanhas por reformas democratizantes das instituições políticas em todos os âmbitos, inclusive no local e no global. Nesta posição parecem se situar os autores do estudo em tela (4).


Os estatistas/protecionistas Sobre esses já tecemos muitos comentários nas seções anteriores. Os estatistas constituem a força mais reacionária que ainda remanesce na atualidade. São os únicos que podem ser considerados propriamente contrários à globalização (não apenas às interpretações neoliberais do fenômeno, mas inclusive ao sentido mesmo do fenômeno objetivo). Por isso, não seria muito adequado, ao meu ver, imaginar – como fazem Held e McGrew – que eles possam desejar uma forma qualquer de globalização. Os estatistas são estadocentristas e, não raro, também são estadocultistas. Grande parte das instituições executivas, parlamentares e judiciárias (sobretudo estas últimas) da imensa maioria das nações-Estados no globo estão dominadas pela cultura estatista e estão ocupadas por pessoas impregnadas por tal ideologia. Não há nenhuma alternativa possível – nem mesmo para disputar os rumos do processo de globalização, invertendo radicalmente o seu sentido para torná-lo mais justo e mais includente – que possa se constituir em aliança com os estatistas (5).


Os radicais Este é o ponto mais fraco da análise de Held e McGrew. Em primeiro lugar, porque nem todos os radicais são antiglobalização e, em segundo lugar, porque há uma aproximação, não adequadamente identificada e realçada, entre eles (ou parte ponderável deles) e os transformadores globais, em uma intensidade às vezes até maior do que entre estes últimos e, por exemplo, os internacionalistas liberais. Em todo caso, colocá-los em globo no limite do espectro (onde deveriam estar, justamente, os estatistas) não parece correto em termos de análise de posições políticas (6).

Mas Held e McGrew quiseram ir além do simples mapeamento das forças. Eles identificaram aspectos em comum nos ideários políticos de algumas posições (a dos internacionalistas liberais, a dos reformadores institucionais e a dos transformadores globais) que conformariam um possível campo de convergência em torno do que chamaram de uma (nova) ‘social democracia cosmopolita’. Desse campo de convergência não participariam – pelo menos não diretamente – os neoliberais, os estatistas/protecionistas e os radicais.

Assim, Held e McGrew elaboraram um esquema das variantes políticas a favor e contra a globalização, tentando evidenciar os padrões de influência e as zonas de pontos em comum às diversas posições, como podemos ver no Diagrama de Held-McGrew, 2002 (cf. Diagrama 1 [= os diagramas não constam desta versão digital]).

A meu ver há aqui, todavia, dois problemas. O primeiro problema diz respeito à classificação dos radicais. Os autores incluem sob tal denominação grande parte dos inovadores, sobretudo os glocalistas (a turma do ‘pensar globalmente e agir localmente’), como se fossem, todos, agentes antiglobalização – o que não é justo. Os que reconhecem o fenômeno da glocalização, no sentido em que venho empregando aqui o termo, não são antiglobalização necessariamente. Essa, aliás, é a grande novidade do fenômeno complexo, ora em curso no mundo, que chamamos em geral de globalização e que é, na verdade, uma glocalização; ou seja, a novidade da mudança social que tem como fulcro a possibilidade inédita da conexão global-local na emergente sociedade-rede.

O segundo problema se refere à tentativa de reeditar a velha e surrada solução social-democrata, agora renovada pelo atributo de “cosmopolita”. Tudo bem com o cosmopolita. O problema está no componente social-democrata, que é, na verdade, um componente estatal-democrata. Em outras palavras, a social-democracia é um estatismo social-democrata. Como diz Claus Offe, é uma “filosofia pura da ordem social” (7) que confere ao Estado o protagonismo único, exclusivo ou preponderante, excluindo ou subordinando as outras esferas da realidade social: o mercado e a sociedade-civil (ou a comunidade), ao invés de buscar a “mistura cívica correta” desses três grandes tipos de agenciamento.

De qualquer modo, o texto de Held e McGrew é um insumo importante para estimular e informar esse debate. No entanto, seus esquemas deveriam ser corrigidos para evitar alguns problemas, como, por exemplo, a confusão entre os que estão trabalhando na nova perspectiva da localização e que não gostariam de ser arrolados, juntamente com os manifestantes de Seattle, sob o mesmo epíteto de “radicais”.

Em suma, Held e McGrew deixam de considerar uma posição importante no espectro de forças: a posição daqueles que são a favor da globalização, que acham que o que está faltando é mais globalização (e não menos globalização), que compartilham de muitos dos ideais dos que eles chamam de radicais, mas que também não se confundem com os reformadores institucionais e com os transformadores globais. Esses são os que poderiam ser chamados de glocalistas.


Os glocalistas A presença dessa nova variante altera obviamente o diagrama proposto por Held e McGrew, gerando um novo esquema, como podemos ver no ‘Diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)’ [= os diagramas não constam desta versão digital]. Mas o perfil dos glocalistas, as suas características básicas distintivas e o overlapping na posição política com os reformadores institucionais, com os reformadores globais e com os radicais, só poderão ser adequadamente compreendidos após a discussão apresentada no presente estudo (8). De qualquer modo, para os que não acreditam que existam um pensamento e uma prática localistas (os glocalistas – comunitaristas inovadores – são os novos localistas, mas existem também os velhos localistas, os comunitaristas conservadores – todos mais ou menos enfiados por Held e McGrew na categoria de ‘radicais’).


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1)-(6) As notas e referências numeradas de (1) a (6) se referem aos itens análogos do Texto 2, que reproduz excertos de David Held e Anthony McGrew (2002). Globalization/Anti-Globalization. Cambridge: Polity Press, 2002.
(7) Offe, C. (1991) “A atual transição da história e algumas opções básicas para as instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.
(8) Ver Capítulo 3.

10 | GLOBALIZAÇÃO E GLOCALIZAÇÃO

Não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’ (mas não exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90).

Como dissemos na introdução, a mudança social em curso, que está na base do processo de globalização atual, tem um duplo sentido. O significativo não é a expansão dos fenômenos para uma escala global em si, mas a simultaneidade entre global e local que ocorre em virtude da possibilidade da conexão global-local. De sorte que não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’.

Quase dez anos atrás, já havia escrito (em “Ação Local: a nova política da contemporaneidade”) que “a ‘volta ao local’ é um fenômeno acompanhante do processo de globalização atualmente em curso. Global e Local não constituem pólos de uma contradição irreconciliável, mas partes complementares de uma mesma tendência que brota da crise do padrão civilizatório atual...” (1). Sem o saber, estava falando de glocalização. Naquela época o termo ‘glocalização’ ainda não era conhecido, muito embora já tivesse aparecido na Harvard Business Review no final dos anos 80.

Ao que se sabe, foram economistas japoneses que introduziram o termo ‘glocalização’ (na mesma revista onde Levitt – como vimos anteriormente – já havia introduzido o termo ‘globalização’ em 1983). Tal como o anterior (‘globalização’), esse novo termo (‘glocalização’) foi cunhado com um sentido predominantemente mercadocêntrico. A preocupação principal dos japoneses era o marketing.

Com efeito, comumente o termo (‘glocalização’) tem sido usado pelo marketing para designar a criação de produtos ou serviços para o mercado mundial, mas adaptados à cultura local. Na sua intervenção intitulada “Comments on the ‘Global Triad’ and ‘Glocalization’”, Roland Robertson (1997) afirmou que “como usado na prática comercial japonesa, o termo se refere à venda ou fabricação de produtos para mercados específicos. E como acredito que a maioria de nós sabe, os empresários japoneses têm sido particularmente bem-sucedidos na venda de seus produtos em diferentes mercados, em contraste com as estratégias desastradas dos americanos…” (2).

Do ponto de vista do marketing (como assinala o site SearchCIO.com), “a crescente presença de McDonalds em todo o mundo é um exemplo de globalização e as mudanças em seu menu para agradar gostos locais são um exemplo de glocalização. Um exemplo que talvez seja ainda mais ilustrativo da glocalização é o seguinte: em suas promoções na França, a rede resolveu recentemente substituir o seu mascote tradicional, o Ronald McDonald, por Asterix o gaulês, personagem popular de histórias em quadrinhos e desenhos animados franceses” (3).

Embora o termo ‘glocalização’ tivesse sido introduzido pelos japoneses, o seu principal divulgador ou popularizador foi o sociólogo Roland Robertson. Para Robertson, a palavra glocalização descreve os efeitos moderadores de condições locais sobre pressões globais. Na conferência sobre "Globalização e Cultura Indígena", Robertson disse que glocalização "significa a simultaneidade – a co-presença – de tendências universalizantes e particularizantes" (4).

Dois anos antes, porém, no texto “Globalization”, Robertson (1995) já havia afirmado que “o local e o global não se excluem. Pelo contrário: o local deve ser compreendido como um aspecto do global. Globalização quer também dizer: a conjunção e o encontro de culturas locais que deverão ainda ser conceitualmente definidas em meio a este “choque de localidades” (5). Robertson propôs então a substituição do conceito base de globalização cultural por glocalização – o cruzamento das palavras globalização e localização.

Ao redefinir o termo ‘glocalização’ no contexto da globalização cultural, Robertson transbordou o escopo mercadocêntrico onde foi introduzido inicialmente, mostrando que ele se refere a um fenômeno mais amplo do que a glocalização dos mercados (6).

Conquanto o enfoque de Robertson inverta o sentido, inserido pelo globalismo econômico, de uma adaptação aos mercados locais feita a partir da dimensão global (do global para o local), contrapondo a idéia de que o contexto local altera a oferta global (do local para o global), sua visão ainda parte do mercado, embora ultrapasse esse aspecto. Como assinalam Cohen e Kennedy, Robertson tentou “descrever como pressões e demandas globais são ajustadas a condições locais. Embora empresas poderosas possam adaptar seus produtos a mercados locais, a glocalização opera na direção oposta. Atores locais selecionam e modificam elementos de uma série de possibilidades globais, dando início a um envolvimento democrático e criativo entre o local e o global” (7).

Todavia, o conceito ainda pode ser mais ampliado para dar conta de captar, inclusive, aquilo que interpretamos como globalização como um caso particular do fenômeno objetivo da mudança social que está ocorrendo na atualidade. Nesse sentido, não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma ‘glocalização’. É o que veremos no próximo capítulo, sobre a glocalização.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Franco, Augusto (1995). Ação local: a nova política da contemporaneidade. Brasília - Rio de Janeiro: Agora Instituto de Política Fase, 1995.
(2) Robertson, Roland (1997). “Comments on the ‘Global Triad’ and ‘Glocalization’”. (intervenção proferida na conferência “Globalização e Cultura Indígena”, promovida em 1997 pelo Institute for Japanese Cultures and Classics da Kokugakuin University).
(3) Cf. http://searchcio.techtarget.com/sDefinition
(4) Op. cit.
(5) Cf. Robertson, Roland (1995). “Glocalization: Time-Space and Homogeneity-Heterogeneity” in Featherstone, Mike, Robertson, Roland & Lash, Scott. Global Modernities. London: Sage Publications, 1995.
(6) Craig Stroupe, da Universidade de Minnesota Duluth, assinala, com razão, que “o termo ‘glocalização’ denota novos tipos de relações entre domínios locais e globais que são possibilitados por tecnologias da informação. Essas relações emergentes subvertem estruturas de poder tradicionais e mediadoras como a economia, o Estado-nação e as disciplinas que compõem as profissões e a "indústria do conhecimento". O conceito de glocalização é altamente contraditório e contestado, pois é usado tanto em teorias de marketing corporativo para descrever o processo de se modificar produtos para públicos locais (essencialmente, tornar o global atraente para o local), como na teoria pós-moderna crítica para descrever as representações globais do local (tornar o local atraente para o global). Em contraste com a “glocalização” – afirma Stroupe –, o termo mais comum “globalização” sugere uma dissociação radical entre o “global” (as multinacionais, o terrorismo internacional, a indústria do entretenimento, a CNN, a Internet) e o “local” (o senso de lugar, de bairro, de cidade, de localidade, de etnicidade e de outras fontes tradicionais de identidade). O termo “glocalização”, por outro lado, denota uma relação mais dinâmica e de duas vias entre esses dois domínios, principalmente à medida que eles estabelecem contato na Internet e em outros meios de comunicação. Wayne Gabardi (em “Negotiating Postmodernism”. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000) escreve que a glocalização caracteriza-se pelo “desenvolvimento de campos diversificados e sobrepostos de vinculações globais-locais... [criando] uma condição de panlocalidade globalizada... que o antropólogo Arjun Appadurai chama de “escapes” espaciais globais desterritorializados (escapes étnicos, escapes tecnológicos, escapes financeiros, escapes da mídia e escapes ideológicos)... Essa condição de glocalização… representa uma mudança de um processo de aprendizagem mais territorializado e vinculado à sociedade do Estado-nação para um processo mais fluido e translocal. A cultura se tornou um software muito mais móvel e humano empregado para se misturar elementos de contextos diferenciados. Com formas e práticas culturais mais separadas de enclausuramentos geográficos, institucionais e atributivos, estamos testemunhando o que Jan Nederveen Pieterse chama de “hibridização” pós-moderna”.
(7) Cohen, Robin & Kennedy, Paul (2000). Global Sociology. London: MacMillan, 2000.