23/05/2008

4 | GLOBALIZAÇÃO E MUDANÇA SOCIAL

O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-originação dependente”.

A partir de meados da década de 1990, alguns pesquisadores compreenderam também que as inovações tecnológicas que possibilitaram a ocorrência do processo atualmente chamado de globalização não determinaram, stricto sensu, este processo, senão que permitiram que ele acontecesse com as características que de fato apresenta no final do século 20 e início do século 21 e que o distinguem de outras possíveis ou imaginadas “globalizações” pelas quais teria passado o mundo em épocas pretéritas.

Por certo a globalização atual, dominada pelo fato da interligação crescente das economias nacionais sob a influência devastadora de um mercado financeiro livre de qualquer regulação normativa, acarreta muitas injustiças comerciais e sociais. O fenômeno global que chamamos de globalização, no entanto, é muito maior do que isso. Não se trata, como ainda imagina boa parte da velha esquerda, de um plano urdido pelas corporações transnacionais, que estão na vanguarda do processo de internacionalização da economia mundial, para dominar o mundo. Trata-se do surgimento de novas condições, sem as quais seria impossível o fluxo interativo de informação e conhecimento que tem permitido, inclusive, que os poderosos complexos financeiros e comerciais possam se internacionalizar e se integrar e tentar dominar o mundo. Mas que permite, também, a percepção compartilhada de problemas e perspectivas globais e o surgimento de novos atores globais, como a nova sociedade civil mundial que está emergindo na atualidade.


Inovação tecnológica e mudança social

Muitas vezes interpretamos essas condições como recursos técnicos: o surgimento das redes telemáticas que possibilitam a interação em tempo real, dando uma qualidade inédita ao processo de globalização do final do século 20, que o diferencia qualitativamente das antigas globalizações possivelmente já ocorridas em outras épocas, como na era das navegações, por exemplo. No entanto, é preciso ver – e isso faz toda a diferença em termos de análise – que tais condições são sociais. O fundamental aqui, como veremos mais adiante, não é o fato de as redes telemáticas serem telemáticas (inovação tecnológica resultante da sinergização entre tecnologias de comunicação em tempo real com tecnologias miniaturizadas de informação em tempo real, amplamente disponibilizadas) e sim o fato de serem redes (inovação social no padrão de organização).

Os avanços técnicos que estão possibilitando a existência de um mundo em tempo real – ou seja, de um mundo sem distância – cumprem um importante papel, de fato, mas a direção do seu desenvolvimento responde ao surgimento de novas relações sociais e não o inverso. Quando se inventa um novo hardware ou um novo software que permitem que tal ou qual operação seja feita entre grupos humanos é porque essa operação atende ou corresponde a um padrão de comportamento dado pela configuração e pela dinâmica desses grupos – uma necessidade, um desejo coletivo, enfim, uma possibilidade de vida ou convivência social admissível ou apropriável por eles.

Em outras palavras, são as relações sociais que determinam, em grandes linhas, os contornos e as características do campo dentro do qual surge a inovação tecnológica. Isso vale tanto para a tecnologia hidráulica dos egípcios, há 4 mil anos, quanto para a tecnologia atual das redes de computadores. Com efeito, como lembra Thompson (no excelente artigo “História cultural e sistemas dinâmicos complexos”, 2001), cada uma das bifurcações ou transformações culturais... [pelas quais passou a humanidade], desde as ferramentas da Idade da Pedra até os computadores, não constitui simplesmente uma mudança tecnológica. A própria inovação tecnológica é algo profundamente embutido em diversos sistemas de valores e símbolos, de modo que uma nova ferramenta pode surgir em sincronia com uma nova forma de sistema de governo e também como uma nova forma de espiritualidade. Em contraste com a história mais linear da tecnologia, a história cultural preocupa-se com o complexo sistema dinâmico no qual a flutuação biológica natural, as restrições ecológicas e os sistemas de comunicação e organização social interagem em um processo de “co-originação dependente” (1).

Mais ou menos nessa mesma linha, conquanto referindo-se especificamente à Internet, Manuel Castells assinalou, no início de 2002, que “as tecnologias são produzidas por seu processo histórico de constituição e não simplesmente pelos seus desenhos originais enquanto tecnologia... A Internet é um instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e sim que é o comportamento o que muda a Internet” (2).

Ora, a esta altura da discussão, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: qual é a mudança social (em sentido amplo, ou seja, no sentido “micro”, relativo à estrutura e à dinâmica das sociedades e no sentido “macro”, cultural-civilizacional) acompanhante – vamos dizer assim – das novas condições políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização? Esse é o ponto.

Acho que é possível mostrar que, no sentido “micro”, a mudança social acompanhante das novas condições políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado a manifestação do fenômeno que interpretamos como globalização é uma mudança democratizante e aponta, dessarte, na direção de novas redes pactuadas de conversações, de um novo “metabolismo” (um novo modo de regular conflitos no interior do sistema formado por agentes que interagem em termos de cooperação e competição) e de um novo “corpo” compatível com esse novo “metabolismo” (ou seja, um novo padrão de organização, caracterizado pela existência de caminhos múltiplos entre os agentes, de conexões “horizontais” – isto é, de redes). Nesses termos, o sentido da grande mudança é o da emergência de cada vez mais redes e a emergência das redes, portanto, constitui a chave para entender a mudança social que está na base do fenômeno que chamamos de globalização.

Penso ser possível mostrar também que, no sentido “macro”, a mudança social acompanhante do surgimento do novo ambiente político mundial que se esboça a partir da queda do Muro e que, juntamente com a inovação tecnológica, tem possibilitado a manifestação do fenômeno que interpretamos como globalização é o surgimento de uma nova cultura planetária, uma cultura conforme àquilo que Giddens chamou de “sociedade cosmopolita global”, uma cultura que só foi possível emergir na nova ambiência política pós-guerra-fria e que – aqui está toda a dificuldade para a análise – acompanha sim os movimentos da nova economia globalizada, porém pode apontar para outra direção, diferente daquela captável pela visão mercadocêntrica ou proposta pelo ‘globalismo’ como ideologia neoliberal.

Assim, há quem anteveja que o processo de emersão dessa nova cultura tenha outro sentido. Thompson, por exemplo, acredita que “estamos testemunhando o surgimento de complexos sistemas noéticos de governança nos quais os seres humanos estão se agrupando em redes eletrônicas globais de consciência. Máquinas que antes eram externas a nós estão se tornando arquiteturas íntimas do nosso envolvimento com outras mentes, outras culturas, outros corpos celestiais” (3).

Com efeito, as coisas estão tão imbricadas – novo ambiente político mundial, inovação tecnológica, nova cultura correspondente a uma sociedade cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local – que torna-se muito difícil para a análise linear da velha sociologia (que procura relacionar causa e efeito por meio de relações unívocas ou biunívocas e confunde causação com anterioridade temporal) captar o fenômeno em sua globalidade. Mas a globalização, como, aliás, diz o termo, é um fenômeno que só se deixa captar por uma visão da sua globalidade enquanto sistema complexo interagente que co-evolui com seus componentes, relacionados entre si por processos de co-originação com múltiplos laços de interdependência.


NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in “Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.
(2) Castells, Manuel (2002). “A Internet e a Sociedade Rede”. http://campus.uoc.es/web
(3) Thompson; op. cit.

8 comentários:

Anônimo disse...

Gostaria de agradecer... seu texto foi de grande ajuda para a finalização do meu trabalho de sociologia. Obrigada!

Anônimo disse...

Em seus textos encontrei um dinamismo enfocado no contexto de globalização, o qual se apura entendimento afinado que não destoa, mas que preenche.
Obrigada pela grande ajuda!!

Anônimo disse...

me ajudou muito com meu trabalho, muito obrigado

Anônimo disse...

Obrigado.

Anônimo disse...

Augusto, boa tarde.

Seu texto é bastante oportuno para esclarecer aos alunos e alunas do ensino a distância na UAB/FaE/UFMG, a ideia geral de que "a globalização é do mal". Ele me será útil para mostrar à eles/elas que é preciso a leitura de vários autores sobre cada tema, conceito, antes de nos manifestarmos "contra ou a favor" de.
Abraço.

Anônimo disse...

Isso e uma merda ...e bricadeira...kkkk

Anônimo disse...

Obgd

Anônimo disse...

Isso e uma merda ...e bricadeira...kkkk